terça-feira, 27 de março de 2012

O golpe e a ditadura militar


Brasil não era um país feliz antes do golpe de 1964. Mas era um país que dava sequência a um ciclo longo de crescimento econômico, impulsionado por Getúlio, como reação à crise de 1929. Nos anos prévios ao golpe era um país que começava a acreditar em si mesmo. Quem toma com naturalidade agora a Copa do Mundo de 1958 não sabe o quanto ela foi importante para elevar a auto estima dos brasileiros, que carregavam, desde o fatídico 16 de julho de 1950, o trauma do complexo de inferioridade.

Mas isso veio junto com a bossa nova, o cinema novo, o novo teatro brasileiro, um clima de expansão intelectual por grandes debates nacionais, pela articulação com grandes temas teóricos e culturais que começavam a preparar o clima da década de 1960.

O país nao foi surpreendido pelo golpe. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial militares que tinham ido à Italia tinham se articulado estreitamente com os EUA. Na sua volta, liderados por Golbery do Couto e Silva e por Humberto Castelo Branco, fundaram a Escola Superior de Guerra e passaram, a partir dali, a pregar os fundamentos da Doutrina de Segurança Nacional – concepção norteamericano para a guerra fria -, que cruzou a história brasileira ao longo de toda a década de 1950 até, depois de várias tentativas, desembocar no golpe de 1964 que, não por acaso, teve naqueles oficiais da FFAA seus principais líderes.

Durante a década de 1950 o Clube Militar foi o antro a partir do qual articulavam golpes contra o Getúlio – seu inimigo fundamental, pelo nacionalismo e por suas políticas populares e articulação com o movimento sindical. O suicídio do Getulio brecou um golpe pronto e permitiu as eleições de 1955, em que novamente os golpistas foram derrotados.

Fizeram duas intentonas militares fracassadas contra JK e elegeram Jânio, com a velha e surrada – mas sempre sobrevivente, até hoje – bandeira da corrupção. Se frustraram com a renúncia deste e naquele momento tentaram novo golpe, valendo-se do vazio da presidência e da ausência do Jango, em viagem para a China. A mobilização popular e a atitude do Brizola de levantar em armas o Rio Grande do Sul na defesa da legalidade, impediram e adiaram o golpe.

Mas os planos golpistas não se detiveram e acabaram desembocando em primeiro de abril de 1964 no golpe, que contou com amplo processo de mobilizações da classe média contra o governo, com participação ativa da Igreja católica, da mídia, das entidades empresariais, que desembocou na ação da alta oficialidade das FFAA, que liquidou a democracia que o Brasil vinha construindo e instaurou o regime do terror que passou a vigorar no Brasil.

Foi o momento mais grave de virada regressiva da história brasileira. Interrompeu-se o processo de democratização social, de afirmação econômica e política do pais, para impor a opressão econômica e politica, a subordinação externa, mediante uma ditadura brutal. O país, sob o comando dos militares, da Doutrina de Segurança Nacional, do grande empresariado nacional e internacional, do governo dos EUA, optou por um caminho que aprofundou suas desigualdades sociais, colocando o acento no mercado externo e na esfera de alto consumo do mercado, no arrocho salarial, na desnacionalização da economia e na opressão militar.

Completam-se 48 anos do golpe militar. Continua sendo hora de perguntarmos a todos: Onde você estava no momento mais grave de enfrentamento entre democracia e ditadura? Cada um, cada força politica, cada empresário, cada órgão da imprensa, cada igreja, cada militar. Os temas continuam atuais: denuncismo moralista a serviço do enfraquecimento do Estado, abertura escancarada da economia, resistência às políticas sociais e aos direitos do povo, uso da religião contra a democracia republicana e o caráter laico do Estado, uso da mídia como força politica da direita, etc. etc.

Que seja uma semana de reflexão e de ação politica. Que o governo finalmente nomeie os membros da Comissao da Verdade e que não passemos mais um primeiro de abril sem apurar tudo o que o regime de terror impôs pela força das botas e das baionetas ao país e que a democracia faça triunfar a verdade.

Artigo do Emir Sader em seu Blogue na Carta Maior

quinta-feira, 22 de março de 2012

O exemplo latino! Qualquer semelhança não é mera coincidência

Em 2011, a crise financeira explodiu na Europa. A crise da Europa é uma crise de desconfiança na capacidade de governos honrarem as suas dívidas. A dívida dos países europeus já havia aumentado em 2009 porque o setor público teve que “estatizar” a dívida privada do seu sistema financeiro: bancos europeus emprestaram aos bancos americanos envolvidos nas operações subprime e não viram o seu dinheiro de volta.
Irritados com pouca influência no FMI e Banco Mundial, entre outras agências, apesar das extensas reservas financeiras, países em desenvolvimento discutem criação de entidade para financiar exclusivamente seus projetos. Foto: 401K/Flickr

Ao mesmo tempo, famílias europeias vinham se endividando para alcançar um modelo de consumo assemelhado ao “American way of life”(o modo de vida americano pré-crise, onde felicidade era sinônimo de consumo de bens de última geração). Então, os bancos europeus, desregulados, passaram a financiar casas e automóveis de luxo. A Europa se transformou em Eurolândia, onde “comprar e ter” passaram a ser mais importantes do que “viver e não ter vergonha de ser feliz” (Gonzaguina). Portugueses pobres e negros passaram a valorizar e a usar Nike. Carros Porsche, Audi, Mercedes, BMW e Volvo de alto luxo se tornaram comuns nas ruas da Europa.

Para financiar o consumo da periferia europeia, bancos se endividavam junto a outros bancos. Endividamento que fazia seus lucros aumentarem. E, muitos governos europeus fizeram dívidas dentro da própria Europa para tentar pagar suas contas comerciais com o exterior, devido à elevada importação que faziam. Governos da periferia, por exemplo, se endividaram para comprar produtos bélicos sofisticados da Alemanha e da França. A Alemanha incentivou esse processo onde bancos assumiam uma postura arriscada e pessoas e governos se endividavam. Lógico: 2/3 das suas exportações vão para a região da União Europeia.

A crise se espalhou por toda a Europa. Tudo começou na Grécia; mas, hoje, o mundo já reconhece as dificuldades da Irlanda, Portugal, Espanha, Itália, França… . Com fama de “bombeiro”, o FMI chegou à Europa e foi recebido pelos anfitriões Banco Central Europeu e a União Europeia. Formaram o bando chamado Troika. A fórmula que a Troika propõe, hoje, aos países europeus já foi adotada, sob as orientações do FMI, em diversos países da América Latina nos anos 1990 – por exemplo, no Equador e Argentina. São dois casos que mereciam ser conhecidos pelos europeus.
Aviso aos navegantes europeus: na América do Sul, o FMI provocou desemprego, miséria e helicóptero (helicóptero???). Aos trabalhadores e pobres, ofereceu o desemprego e a miséria. Aos governantes, ofereceu um helicóptero… (helicóptero???).
Merkel, a diretora-gerente do FMI,
Christine Lagarde (E) e Sarkozy em encontro anterior em Bruxelas.
Foto: Eric Feferberg/AFP

O Equador e a Argentina seguiram o receituário do Consenso de Washington imposto pelo FMI. Privatizaram suas empresas públicas, abriram seus mercados aos países industrializados, cortaram gastos sociais, promoveram demissão de funcionários públicos, reduziram direitos dos trabalhadores e deram liberdade a seus mercados financeiros. Mas, mais do que isso foi feito. Avaliavam que países de segunda categoria não tinham condições de ter moeda própria. Eram considerados, por natureza, irresponsáveis. Seria mais adequado que utilizassem a moeda americana, o dólar.

O Equador, no ano de 2000, substituiu a sua moeda, o sucre, pelo dólar. Lá, tudo é comprado ou vendido com dólares americanos. Na Argentina, houve um processo semelhante. A Argentina não extinguiu a sua moeda. Mas, a partir de 1º de janeiro de 1992, somente poderia circular o “peso argentino conversível”, isto é, para cada peso existente na economia deveria existir um dólar em posse do Banco Central da Argentina.

Mais pesos somente poderiam circular na economia se mais dólares estivessem nos cofres do Banco Central argentino. Para dar credibilidade ao chamado “Plano de Conversibilidade”, a taxa de câmbio de 1 peso para 1 dólar americano foi escrita na Constituição do país. Assim, a Argentina se dolarizou plenamente, tal como o Equador. Ambos os países perderam a capacidade, portanto, de emitir suas próprias moedas (qualquer semelhança da Europa, de hoje, com a América do Sul, dos anos 1990 e início dos anos 2000, não é mera coincidência).

O resultado de estabilidade e prosperidade prometido pelo FMI para a Argentina e o Equador não passou de propaganda enganosa. O presidente Carlos Menem governou a Argentina de 1989 a 1999. Era o garoto propaganda da peça publicitária pregada pelo FMI. Contudo, deixou um país em crise, endividado, com o patrimônio público dilapidado e com alto índice de desemprego e pobreza.
Em 1999, assumiu a presidência Fernando de La Rua, que resolveu aplicar o receituário do FMI para solucionar crises: cortar gastos públicos nas áreas sociais, aumentar impostos e promover arrocho salarial ao funcionalismo público. Não obteve sucesso. O povo argentino foi para as ruas com o sentimento de “tolerância zero” às medidas orientadas pelo FMI… e De La Rua foi obrigado a renunciar no dia 20 de dezembro de 2000. Fugiu da sede do governo, a Casa Rosada, de helicóptero.
Militantes protestam contra medidas dos governos
diante da crise. Foto: Pascal Guyot/AFP

Todos os acontecimentos argentinos se repetiram no Equador. Em 20 de abril de 2005, o presidente foi destituído. O cenário não era mais a Casa Rosada; mas, sim, o Palácio Carondelet. Até o meio de transporte utilizado para a fuga foi o mesmo. Apenas o nome do passageiro do helicóptero era outro: presidente Lucio Gutiérrez.

A fórmula da Troika é conhecida por países sul-americanos. Assim, um alerta aos navegantes europeus deve ser deixado: depois da sequência de aventuras econômicas e financeiras para reduzir o déficit público, ao povo é oferecido desemprego, miséria e sofrimento.
Em paralelo, as revoltas populares se sucedem de forma incontrolável, até que se transformam em crise política e de governabilidade. Quando a situação se torna insustentável para todos, o FMI oferece “resgate de helicóptero” como prêmio de fidelidade ideológica a governantes desmoralizados.

O artigo é do João Sicsú no site da Carta Capital

segunda-feira, 19 de março de 2012

Direitos humanos e diversidade religiosa



Por Roberto Arriada Lorea

Na democracia não há crime de heresia. O Estado laico assegura que cada cidadão e cidadã possa viver segundo sua crença, sem receio de ser perseguido ou perseguida por seu pertencimento religioso. Na Constituição Federal (1988), este direito está previsto no artigo 5º, inciso VI, o qual assegura liberdade de consciência e de crença. O ambiente democrático fomenta a diversidade, na medida em que as pessoas ficam livres para viver segundo suas crenças, acreditando ou não na existência de Deus.

No Brasil, durante a Monarquia, experimentamos outro modo de tratamento para o fenômeno religioso. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), por exemplo, não se cogitava de liberdade para o indivíduo escolher sua religião. O Livro Primeiro, título II, dispunha “como são obrigados os pais, mestres, amos e senhores, a ensinar, ou fazer ensinar a doutrina cristã, aos filhos, discípulos, criados e escravos”, enquanto seu Livro Quinto, título I, propunha “Que se denunciem ao Santo Ofício os hereges e os suspeitos de heresia ou judaísmo”. Assim, com o Estado impondo uma religião e perseguindo as demais, forjou-se a maioria católica no Brasil, naturalizando-se o tratamento desigual àqueles que não professam a religião da maioria.

A memória de um Estado brasileiro confessional e intolerante deve ser preservada, para assegurar que as novas gerações saibam que os valores democráticos, que asseguram o respeito à crença do outro, são conquistas do Estado laico, proclamado por meio do Decreto 119-A, em 1890. A laicidade, definida como o regime de convivência no qual o Estado se legitima pela soberania popular e não mais por algum poder divino, não é contra as religiões. Ao contrário, o Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega a existência de Deus, tampouco estabelece hierarquia entre as milhares de crenças professadas no país, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão. A laicidade fomenta a diversidade religiosa, inerente a uma sociedade livre e plural.
Importante destacar que o Estado laico assegura aos religiosos a liberdade para vivenciarem sua fé, inclusive discordando da hierarquia de sua própria Igreja. Assim, por exemplo, as mulheres católicas que escolham usar a pílula, ou os jovens católicos que escolham usar o preservativo, podem fazê-lo graças à laicidade, que lhes garante o direito de decidir livremente seguir ou não os dogmas de sua própria Igreja.

Contudo, a transição de um monopólio religioso para um regime de liberdades, impõe desafios à democracia. A mudança legislativa deve se fazer acompanhar por uma transformação cultural, que desnaturalize a desigualdade religiosa. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Organização das Nações Unidas pauta o tema da liberdade religiosa. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, enfatizando: “Tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro”.
Nas democracias modernas, a tolerância aparece como uma necessidade política e jurídica. Temas como a discriminação por motivos religiosos, ensino religioso na escola pública, assédio religioso, direitos sexuais e reprodutivos, capelanias militares, exibição de símbolos religiosos em prédios públicos, uso dos meios de comunicação para incitar o ódio religioso, são alguns exemplos que apontam para a necessidade de políticas públicas que contemplem a diversidade e não estejam condicionadas por uma determinada crença.

Debater essas questões exige uma enorme disposição para o diálogo. A ONU tem encorajado os Estados membros a enfrentar esse desafio. Em 1981, na Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou Convicção, o artigo 4º propõe: “Todos os Estados adotarão medidas eficazes para prevenir e eliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções no reconhecimento, o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica, política, social e cultural”.
Os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, no plano internacional, vinculam o Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de uma transformação cultural que desnaturalize a desigualdade, impondo aos funcionários públicos postura imparcial no exercício do cargo, quando representam o Estado. No Brasil, a Lei 9.459/97, em seu artigo 20, define como crime: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”. Caracteriza discriminação o fato de o servidor público, no exercício do cargo, estabelecer preferência ou distinção a uma determinada crença.

Nesse sentido, o artigo 19, I, da Constituição Federal estabelece a separação entre o Estados e as Instituições Religiosas, proibindo a subvenção a cultos e qualquer forma de aliança. Importa registrar que a colaboração mencionada no dispositivo, deve atender ao interesse público, o qual não se confunde com o interesse circunscrito a um conjunto de pessoas que compartilham determinada crença, ainda que majoritária.

Em 2011, a ONU volta ao tema, aprovando a Resolução 16-18, cujo conteúdo reforça a necessidade de os Estados membros enfrentarem a intolerância religiosa. Portanto, a iniciativa do Governo Federal, de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, merece ser festejada por todos que acreditam na democracia, pois demonstra a necessária disposição para o diálogo com os mais variados segmentos da sociedade, visando reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a diversidade, à luz dos Direitos Humanos.

Pescado no RS Urgente e originalmente publicado no site Judiciário e Sociedade, em 12/12/2011.


(*) Roberto Arriada Lorea é Juiz de Direito. Diretor do Departamento de Direitos Humanos da AJURIS. Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Núcleo de Estudos em Direito e Religião, da Escola Superior da Magistratura. Membro do Comitê de Diversidade Religiosa, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

sexta-feira, 16 de março de 2012

FMI e suas práticas

Sobre homofobia : De Bolonha ao Club Paulistano


O fenômeno representado pela homofobia aumenta pelo planeta e mostra as ambiguidades ético-morais presentes em estados laicos cujas constituições democráticas proclamam a igualdade e repudiam a discriminação derivada de orientação sexual. Chamo a atenção para dois recentes episódios discriminatórios, ambos disfarçados com tinta de matiz farisaica.

Uma das incivilidades ocorreu em Bolonha, por ocasião dos funerais na gótica Basílica de São Petrônio, do aclamado Lucio Dalla, cantor, compositor, poeta e arranjador musical. Numa Bolonha de arquitetura deslumbrante, com cem torres e 35 quilômetros de pórticos. Onde foi fundada, em 1088, a primeira universidade do Ocidente e que rejeita, nas urnas, os candidatos de perfil filo-fascista. Dalla nasceu nessa cidade, como o cineasta Passolini e, no século XIV, o papa matemático Gregório XIII (1572-1585), autor do nosso calendário bissexto.
A outra ocorrência foi protagonizada pelo conselho representativo do centenário Club Athletico Paulistano (CAP) e vitimou um casal de médicos homossexuais, Ricardo Tapajós e Mário Warde Filho. Ao dar prevalência ao estatuto social, o CAP derrogou a Constituição republicana de 1988 e fez tábula rasa à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que, legitimamente, é o guardião da nossa Lei Maior.

Essa decisão surpreende. O clube conta no seu quadro associativo com destacados defensores do Estado de Direito e já teve, num passado recente, vultos que lutaram heroicamente pela prevalência constitucional. Refiro-me à Revolução Constitucionalista de 1932, o maior movimento cívico da história desse estado bandeirante. Esses antigos associados, acusados à época de separatistas pelos chamados “aliancistas” e membros do então Partido Democrático de São Paulo, devem estar a afundar de vergonha nas suas covas em face da recente decisão de afronta à nossa Lei Magna.

Com efeito. Lucio Dalla faleceu em 1º de março de 2011, durante uma turnê em Montreux (Suíça). Não deixou testamento, mas preparava a documentação para dar vida a uma fundação que seria um “laboratório para, pela música e pela arte, descobrir, preparar e lançar novos talentos”. Dalla, como todos sabiam, mantinha uma relação afetiva de mais de dez anos com o talentoso artista Marco Alemanno, de 32 anos. Ele tinha fé cristã, vivia, como gostava de dizer, “in mezzo alla gente”. Era visto nos bares, restaurantes e até em igrejas a orar. Era devoto do popular Padre Pio, considerado como falso taumaturgo pelo papa João XXIII, mas já conduzido à glória dos altares como santo da Igreja.

Por evidente, interessava à Igreja velar o corpo de Dalla: 30 mil pessoas passaram pela basílica para o último adeus. E interessava a ponto de abrir exceção diante das rígidas proibições do tempo da Quaresma, onde santos são cobertos e celebrações suspensas. Diante da exceção aberta, exigências eclesiásticas restaram impostas, em especial o silêncio sobre a união estável Dalla-Alemanno. Também não se pode tocar as músicas de Dalla: num dos seus sucessos, Caro Amico Ti Scrivo, consta que “cada um fará amor com quem quiser”. Outra exigência foi Alemanno passar como amigo de família. Assim, teve permissão para ler a poesia Le Rondine (As Andorinhas), do falecido convivente Dalla.

A hipocrisia acabou desmontada pela jornalista Lucia Annunziata, que já presidiu a RAI, televisão estatal. Disse ela que os funerais estavam a representar um dos exemplos fortes do que significa ser gay, numa referência à Itália sob influência vinda do outro lado do Tevere, ou seja, da Santa Sé: “Enterra-se com rito católico desde que não se propale o fato de o falecido ter sido gay”. O papa Ratzinger já deixou patente a intolerância da Igreja, embora tivesse tentado consertar a colocação de considerar o homossexualismo uma doença. Esse caminho obs-curantista ainda é trilhado no Brasil pelos evangélicos, que acabaram de receber o Ministério da Pesca para refrear o fanatismo, embora continuem a querer do governo postos psiquiátricos para reversão da orientação sexual considerada pecaminosa.

No caso do médico Tapajós, que não obteve sucesso na tentativa junto ao CAP de colocar como seus dependentes o companheiro e a filha deste, o juiz Zarvos Varellis, ao decidir a lide processual instaurada, lembrou que o STF reconhece como entidade familiar, à luz dos direitos fundamentais da Constituição, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para o CAP, onde se quer que o estatuto prevaleça à Constituição, união estável só entre homem e mulher. Certamente, terão os conselheiros as bênçãos de Ratzinger e da bancada evangélica do nosso Parlamento. A propósito, convém recordar o observado pelo desembargador Francisco de Paula Sena Rebouças, na sua recém-lançada obra Uma República Provincial (Ed. Manole), “somos herdeiros de uma cultura autocrática que, a partir do absolutismo monárquico, passou pelo mandonismo do senhor das terras e dos escravos, pela prepotência das botas e seus maquiavélicos tacões”.

Artigo do Wálter Meierovitch na Carta Capital

sexta-feira, 9 de março de 2012

O discurso da direita


A direita brasileira tem no seu DNA o golpe de 1964 e a ditadura militar. No momento mais decisivo da história brasileira até aqui, quando se jogava o futuro do país, no choque entre democracia e ditadura, a direita – em todas as suas vertentes, partidárias, intelectuais, midiáticas, empresariais, religiosas – ficou com a ditadura.

A boa pergunta a cada homem público, a cada instituição, a cada força política, a cada jornalista, a cada intelectual, a cada brasileiro, a cada cidadão, é saber onde estava naquele momento crucial: defendendo a democracia ou apoiando o golpe e a ditadura militar?

Por isso os constrangimentos desses setores todos para se referir àquele período da nossa história. Tratam de esconder sua postura na ruptura da democracia, para deslocar tudo para os momentos em que foram vítimas do próprio monstro que ajudaram a criar como, por exemplo, na censura a órgãos de imprensa. Querem deixar de passar como verdugos para aparecerem como vítimas da ditadura cuja instalação eles apoiaram. Ou para anularem o papel de verdugos e vítimas, igualando e anulando aos dois.

Como a direita se refere agora à ditadura? Há vários discursos. A ultra direita –incluindo setores militares – segue com o discurso dos militares no momento do golpe - reproduzido naquela época por todos os que os apoiavam – mídia, partidos de direita, igreja, empresários, etc., etc . – de que se tratava de um golpe preventivo, que buscava evitar um golpe da esquerda (?), que levaria o Brasil a ser um país comunista, como Cuba, China e a URSS (sic).

Teriam atuado então na defesa da democracia, literalmente diziam que era um movimento de defesa da democracia, contra o totalitarismo comunista. É o discurso que mantem a ultra direita, cívica e militar. Teria se dado uma “guerra” entre duas partes, uma defendendo a democracia, outra querendo implantar o “totalitarismo comunista”, triunfou uma delas, que deveria ser reconhecida pela nação como sua salvadora.

Desconsideram que tudo aconteceu porque eles violaram a democracia e impuseram a ditadura, eles destruíram o Estado de direito, prenderam arbitrariamente, torturaram, fuzilaram, desapareceram pessoas e seus corpos. Destruíram a democracia que o Brasil vinha construindo e impuseram um regime de terror, valendo-se do aparato de Estado, construído com os impostos da cidadania, para controlar e atacar o Estado de direito.

Por isso, eles têm medo da Comissão da Verdade, têm medo da democracia, têm medo da apuração do realmente aconteceu. Dizem que haverá “revanchismo”. Só se for a revanche da verdade sobre a mentira. (Como disse Dilma, na ditadura não há verdade, só mentira.) Da Justiça sobre o regime de terror. Da democracia sobre a ditadura. Quem não deve, não teme, não tem medo da verdade.

Outra versão - proveniente dos que defenderam essa primeira versão no seu momento, mas que pretenderam estar reciclados para a democracia - é a chamada “teoria dos dois demônios”, segundo a qual a democracia teria sido assaltada por duas forças antidemocráticas, que se equivalem, ambas totalitárias. Dizem isso, embora eles mesmos tivessem estado firmemente de um dos lados – o da ditadura.

Agora, reclicados como liberais, pretendem equidistância dos enfrentamentos entre duas propostas supostamente “totalitárias”, felizmente derrotadas pelo advento da democracia liberal. Não consideram que, quem assaltou a democracia – com o seu apoio –, foram os golpistas, que os da resistência a defenderam, usando do direito à rebelião, consagrado como direito universal.

Precisam esquecer 1964, daí que encaram a história brasileira depois do fim da ditadura. A direita brasileira não pode falar de 1964, do seu papel de promover as mobilizações e as articulações golpistas, do bloco que articularam, para promover a ditadura militar. Não pode fazer sua história. A ultra direita é mais sincera, mas é inaceitável pelos consenso liberais predominantes hoje, então fica isolada, como primo renegado da direita oficial de hoje.

A Comissão da Verdade é um momento que a direita, nas suas distintas versões, tem medo, porque tem medo da verdade.

Por Emir Sader em seu blogue na Carta Maior

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre mercados futuros, sem urubologia; Na real


Juros podem ir abaixo de 9%


Apesar de toda a “teoria conspiratória” que a mídia procura atribuir ao Governo na redução da taxa de juros, ela vai seguir e aprofundar-se.
Hoje, o mercado financeiro já negociava taxas futuras de juros abaixo de 8,75% para janeiro de 2013 e isso pode cair se, amanhã, o IPCA vier – como deve vir – abaixo do 0,45% que o mercado “estima” – estima nada, só sustentou essa previsão porque isso poderia ajudar a “segurar” os juros na reunião de ontem do Copom.
“Atualmente o mercado de juros futuros já precifica uma taxa de 8,75% ao ano. Mas se vierem dados mais positivos de inflação, essa aposta será alterada para 8,5%”, diz Alfredo Barbutti, economista da corretora BGC Liquidez, ao jornal Brasil Econômico.
Também no Valor, a previsão é semelhante:
“No mercado, parece crescer a visão de que outro corte de 0,75 ponto será implementado em abril e mais uma redução de 0,50 ponto em maio. Com isso, a taxa básica cairia a 8,50% ao ano, nova mínima histórica. As taxas futuras caem justamente por colocar esse cenário no preço”.
O ciclo de expansão econômica está aberto.

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quarta-feira, 7 de março de 2012

Reflexão de uma mulher, para mulheres, meninas, e pais de meninas

Miss: Rainha de quê?


Sinto-me especialmente feliz por conseguir me indignar frente a coisas simples e relativamente bem aceitas pela sociedade. Um exemplo são os tradicionais concursos de miss.
Quantas mulheres, ao longo da história, dedicaram suas vidas a combater o machismo, a conquistar o espaço que temos hoje. Mulheres que viveram e enxergaram além do seu tempo e, por isso, foram estigmatizadas, hostilizadas e sofreram todas as "sanções sociais" possíveis.

Hoje, procuramos nos qualificar profissional e intelectualmente. Aprendemos idiomas estrangeiros para alcançar novas culturas e novas oportunidades - não, apenas, por ser obrigação de uma moça fina. Batalhamos, todos os dias, no mercado de trabalho, para receber, no mínimo, o mesmo salário que os homens, ao executar o mesmo trabalho. Brigamos em casa para que nossos companheiros dividam as tarefas domésticas e, consequentemente, compatilhem conosco o "terceiro expediente". No trabalho, elogios e assédio ainda se confundem e as dúvidas sempre pairam sobre quem não se submete. Afinal, é mais fácil encontrar uma subalterna vadia, do que um chefe tarado.

Nosso corpo é só nosso e, por isso, temos que brigar, ainda, com a Igreja e com o Estado, para que compreendam isso e nos permitam cuidar dele como nos convenha. Por falar em corpo, temos mesmo que cuidar dele muito bem, porque há grandes chances de sermos discriminadas, caso estejamos muito distante dos padrões de beleza. Quantas são admiradas por serem chefes de família, por criarem seus filhos e serem mães e pais ao mesmo tempo? Tenho a certeza, também, de que hoje as mães sonham que suas filhas ocupem, em igual quantidade e qualidade, cargos de chefia, diretorias, presidências. Poucas décadas atrás, o principal anseio das mães para felicidade de suas filhas era mais difícil de alcançar: que fizessem um bom casamento (seja lá o que isso significasse), tivessem muitos filhos e fossem felizes para sempre.

Em meio a todo esse contexto, vemos concursos de beleza de todo tipo. Miss disso ou daquilo, musa, garota, rainha, princesa. Desfilam, dançam, respondem abobrinhas, coisas ridículas e medíocres ou, no mínimo, memorizadas e falsamente vomitadas ao microfone. São ridicularizadas, servem de chacota, seja por serem bonitas e terem falado absurdos, seja por não cumprirem com os padrões - locais ou "universais" - de beleza imposto nos concursos. No final, a vencedora ganha uma faixa, um cetro e uma coroa. Acena doce e passivamente à multidão, chora de emoção, agradece, vai embora. Em resumo, representa tudo o que sempre nos tentaram impor e que esbravejamos para não permitir. Aceitam pacificamente discriminação social e racismo evidentes em TODOS esses concursos, e assumem, tacitamente, que a beleza é o que uma mulher pode oferecer de melhor. Afinal, o que mais elas oferecem nesse concurso? Habilidades? Conhecimentos? Cultura?

Esse ano, o Miss Universo acontecerá no Brasil. Para quê? Não precisamos de uma rainha, temos uma presidenta eleita pelo voto direto. Já colocamos a faixa no peito de uma mulher que não é bonita, não é jovem, nem loira, alta e magra. Tem o corpo castigado por lutar pela democracia e pelo povo do seu país. Por não ser doce, dócil, passiva, submissa, tem fama de ser dura, fria, grossa. E, no Brasil governado por esta mulher, tantas outras morrem assassinadas por seus companheiros; morrem de parto ou de complicações por aborto inseguro; são violentadas e exploradas sexualmente; trabalham no campo e na cidade, em casas de família, na informalidade e não têm seus direitos trabalhistas respeitados. Para que uma rainha da beleza, se temos mais de 22 milhões de mulheres chefes de família. Em nossa História, recente e remota, temos tantas mulheres que nos orgulham e nos fazem acreditar que vale à pena lutar por um mundo melhor. Não, definitivamente não precisamos de títulos como esses.

Por tudo isso e em respeito às mulheres do Mundo, eu não assisto ao concurso de Miss. E você?

*Marília Arraes (foto) é vereadora do Recife/PE, pelo PSB.
Fonte: http://www.mariliaarraes.com.br/blog.php
Pescado no Blogue do Júlio Garcia

terça-feira, 6 de março de 2012

Sobre a direita Latino americana: Sobrou a mídia e os milícos

Uruguai pedirá desculpas, e o Brasil?


A diferença entre o Uruguai e o Brasil está no tamanho… dos jornalistas. Para cada Eduardo Galeano produzido no Uruguai o Brasil vira poleiro de 10 Galvões Buenos. Mesmo que no Uruguai apareça um jornalista boçal, jamais ele fará parte de uma Academia de Letras, como o Merval Pereira. No Brasil há uma tendência para a premiação dos jornalistas de cabresto, também chamados de colonistas, os poodles do patrão.
A mídia brasileira é a principal responsável pela implantação da ditadura, haja vista que ajudou os que não têm idéias usarem armas para derrubarem os eleitos democraticamente. Locupletaram-se com a ditadura. Globo fez aquele famoso editorial conclamando pela vinda dos coturnos. A Folha de São Paulo nem chama de ditadura, mas ditabranda. Logo ela, a FSP, que emprestava seus carros de transporte de jornal para os torturadores transferirem para as valas comuns os mortos no DOI-CODI. Na Veja já não trabalham mais jornalista, virou apenas mais um canil às margens do Tietê.
A RBS nasceu, cresceu e apodreceu no bojo da ditadura. Quem ouve seus comentaristas esportivos nota o quanto foi prejudicial a escolha de descapacitados intelectualmente para lá trabalharem. As opiniões políticas de um Pedro Ernesto Denardin, de um Wianey Carlet valem tanto quanto um maço de cigarros Tufuma.
Na RBS, por exemplo, até parece que só podem trabalhar dois tipos de profissionais: os mal informados e os mal intencionados!

Enquanto no Brasil militares da Reserva, hoje óleos queimados da história, se insubordinam por saudosismo dos tempos da ditadura e receio da Comissão da Verdade, como bem já explicou Urariano Mota, no próximo dia 21 de março no Uruguai haverá um ato público na Assembleia Nacional em que o governo pedirá desculpas às vítimas da ditadura em vigor no país de 1973 a 1984 e que contava com o apoio de sucessivos governos brasileiros comandados por generais de plantão.
O ato foi convocado por exigência da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), adotada em fevereiro de 2011. A importante cerimônia contará com a participação do Presidente José Pepe Mujica, uma das vítimas da cruel ditadura, que esteve preso na condição de refém por mais de 10 anos. Refém significava isolamento e se a guerrilha tupamara voltasse a atuar o preso seria submetido a piores maus tratos e até era ameaçado de fuzilamento.
Também no dia 21, o Estado uruguaio indenizará em 500 mil dólares, quantia fixada em sentença, a família do poeta argentino Juan Gelman, cuja nora, María Claudia García Iruretagoyena, foi assassinada, no contexto da Operação Condor, no Uruguai, e a neta entregue para adoção a uma família de militares. Ela acabou sendo localizada e se empenhou no sentido de exigir que o Uruguai assumisse a responsabilidade pelo assassinato da mãe e do pai.
Estes governos ditatoriais tinham acordos e os seus sistemas de inteligência agiam em conjunto na caça de opositores, sejam contra os que optaram pela luta armada ou por outro tipo de contestação ao regime de força.
Militares que assinaram o manifesto e que disseram não reconhecer Celso Amorim como Ministro da Defesa agiam em comum acordo com seus colegas torturadores do Cone Sul. E agora um deles cinicamente afirmou que entrará na Justiça por ter sido repreendido pelos comandantes militares e usa o argumento da “liberdade de expressão”. E vejam só, uma figura que tinha comando naquela época de trevas e censura vem falar de liberdade de expressão. É cinismo ou não é?
O que aconteceu com o filho e a nora de Juan Gelman não foi o único caso daqueles tempos hediondos que os signatários do manifesto têm saudades. Fatos dessa natureza não podem ser esquecidos, até porque os crimes praticados são de lesa humanidade e portanto imprescritíveis. Ficam no mesmo nível que os crimes cometidos por oficiais nazistas, muitos deles descobertos quando tinham mais de 80 anos. E nem por isso seguiram impunes.
O Estado brasileiro também foi sentenciado pela Comissão de Direitos Humanos da OEA no sentido de apresentar os restos de combatentes da guerrilha do Araguaia, assassinados quando tinham sido capturados e não ofereciam resistência por estarem fora de combate. A Comissão também questionou a vigência da Lei da Anistia.
A resposta brasileira não teve a grandeza do governo uruguaio. Para o Brasil está em vigor a Lei da Anistia, que absolveu de antemão quem nunca foi submetido a julgamento por violar diretos humanos. Uma lei que, por sinal, como indica pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), é desconhecida por 74% dos brasileiros.
Na verdade, não é de hoje que associados do Clube Militar têm se manifestado em defesa do ideário golpista de 1964 na base da odiosa linguagem da Guerra Fria. Na última “comemoração” do golpe apareceu até Sandra Cavalcanti, ex-secretária do governo Carlos Lacerda com o discurso que se imaginava varrido para o lixo da história.
Na antevéspera da campanha eleitoral de 2010, dois jornalistas, Merval Pereira, de O Globo, e Reinaldo Azevedo, da revista Veja, compareceram e fizeram críticas do gênero golpista contra o então Presidente Lula e a candidata Dilma Rousseff. Foram aplaudidíssimos pelos presentes, apoiadores do golpe de 64. Merval e Azevedo volta e meia falam em suas colunas na democracia que defendem desde criancinha.
Parece que esta gente não aprendeu nada nestes anos todos.
Já na Argentina, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados convidou o Juiz Baltazar Garzon para prestar assessoria, reconhecendo assim a importância do magistrado espanhol que foi injustiçado em seu país pelo conservadorismo predominante no Poder Judiciário. Os parlamentares argentinos merecem todo aplauso pela iniciativa.

Gilmar Crestani no Ficha Corrida

domingo, 4 de março de 2012

O que a esquerda deveria aprender com os evangélicos

Ultimate Fighting Championship: Marx vs. Cristo
"As massas de homens que nunca são abandonadas pelos sentimentos religiosos
então nada mais vêem senão o desvio das crenças estabelecidas.

O institnto de outra vida as conduz sem dificuldades
ao pé dos altares e entrega seus corações aos preceitos
e às consolações da fé."
Alexis de Tocqueville, "A Democracia na América" (1830), p. 220. 

No Brasil, um novo confronto, na forma como dado e cada vez mais evidente e violento, será o mais inútil de todos: o do esclarecimento político contra o obscurantismo religioso, principalmente o evangélico, pentecostal ou, mais precisamente, o neopentecostal. Lamento informar, mas na briga entre os dois barbudos – Marx e Cristo – fatalmente perderemos: o Nazareno triunfa. Por uma razão muito simples, as igrejas são o maior e mais eficiente espaço brasileiro de socialização e de simulação democrática. Nenhum partido político, nenhum governo, nenhum sindicato, nenhuma ONG e nenhuma associação de classe ou defesa das minorias tem competência e habilidade para reproduzir o modelo vitorioso de participação popular que se instalou em cada uma das dezenas de milhares de pequenas igrejas evangélicas, pentencostais e neopentecostais no Brasil. Eles ganharão qualquer disputa: são competentes, diferentemente de nós.

Muitos se assustam com o poder que os evangélicos alcançaram: a posse do senador Marcello Crivela, também bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, no Ministério da Pesca e a autoridade da chamada “bancada evangélica” no Câmara dos Deputados são dois dos mais recentes exemplos. Quem se impressiona não reconhece o que isso representa para um a cada cinco brasileiros, o número dos que professam a fé evangélica ou pentecostal no Brasil. Segundo a análise feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir dos microdados da Pesquisa de Orçamento Familiar 2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a soma de evangélicos pentecostais e outras denominações evangélicas alcança 20,23% da população brasileira. Outros indicadores sustentam que em 1890 eles representavam 1% da população nacional; em 1960, 4,02%.

O crescimento dos evangélicos não é um milagre, é resultado de um trabalho incansável de aproximação do povo que tem sido negligenciado por décadas pelas classes mais progressistas brasileiras. Enquanto a esquerda, ainda na oposição política, entre a abertura democrática pós-ditadura e a vitória do primeiro governo popular no Brasil, apenas esbravejava, pastores e missionários evangélicos percorreram cada canto do país, instalaram-se nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos, abriram suas portas para os rejeitados e ofereceram, em muitos momentos, não apenas o conforto espiritual, mas soluções materiais para as agruras do presente, por meio de uma rede comunitária de colaboração e apoio. O que teve fome e dificuldade, o desempregado, o doente, o sem-teto: todos eles, de alguma forma, encontraram conforto e solução por meio dos irmãos na fé. Enquanto isso, a esquerda tinha uma linda (e legítima) obsessão: “Fora ALCA!”.

O crescimento dos evangélicos não é um milagre, é resultado de um trabalho incansável de aproximação com o povo
Desde Lutero, a fé como um ato de resistência (Life of Martin Luther and and the Heros of Reformation, litografia, 1874)

O mapa da religiosidade no Brasil revela nossa incompetência social: os evangélicos e pentecostais são mais numerosos entre mulheres (22,11% delas; homens, 18,25%), pretos, pardos e indígenas (24,86%, 20,85% e 23,84%, respectivamente), entre os menos instruídos (sem instrução ou até três anos de escolaridade: 19,80%; entre quatro e sete anos de instrução: 20,89% e de oito a onze anos: 21,71%) e na região norte do país, onde 26,13% da população declara-se evangélica ou pentecostal. O Acre, esse Estado que muitos acham que não existe, blague infantilmente repetida até mesmo por esclarecidos militantes de esquerda, tem 36,64% de evangélicos e pentecostais. É o Estado mais evangélico do país. Simples: a igreja falou aos corações e mentes daqueles com os quais a esquerda nunca verdadeiramente se importou, a não ser em suas dialéticas discussões revolucionárias de gabinete, universidade e assembleia.

O projeto de poder evangélico não é fortuito. Ele não nasceu com o governo Dilma Rousseff. Ele não é resultado de um afrouxamento ideológico do PT e nem significa, supõe-se, adesão religiosa dos quadros partidários. Ele é fruto de uma condição evangélica do país e de uma sistemática ação pela conquista do poder por vias democráticas, capitalizada por uma rede de colaboração financeira de ofertas e dízimos. Só não parece legítimo a quem está do lado de fora da igreja, porque, para cada um dos evangélicos e pentecostais, estar no poder é um direito. Eles não chegaram ao Congresso Nacional e, mais recentemente, ao Poder Executivo nacional por meio de um golpe. Se, por um lado, é lamentável que o uso da máquina governamental pode produzir intolerância e mistificação, por outro, acostumemo-nos, a presença deles ali faz parte da democracia. As mesmas regras políticas que permitiram um operário, retirante nordestino e sindicalista chegar ao poder são as que garantem nas vitória e posse de figuras conhecidas das igrejas evangélicas a câmaras de vereadores, prefeituras, governos de Estado, assembleias legislativas e Congresso Nacional. O lema “un homme, une voix” (“um homem, uma voz”) do revolucionário socialista L.A. Blanqui (1805-1881), “O Encarcerado”, tem disso.

Afora a legitimidade política – o método democrático e a representação popular não nos deixam mentir – a esquerda não conhece os evangélicos. A esquerda não frequentou as igrejas, a não ser nos indefectíveis cultos preparados como palanques para nossos candidatos demonstrarem respeito e apreço pelas denominações evangélicas em época de campanha, em troca de apoio dos crentes e de algumas imagens para a TV. A esquerda nunca dialogou com os evangélicos, nunca lhes apresentou seus planos, nunca lhes explicou sequer o valor que o Estado Laico tem, inclusive como garantia que poderão continuar assim, evangélicos ou como queiram, até o fim dos tempos. E agora muitos militantes, indignados com a presença deles no poder, os rechaçam com violência, como se isso resolvesse o problema fundamental que representam.

A esquerda nunca dialogou com os evangélicos, nunca lhes apresentou seus planos, nunca lhes explicou sequer o valor do Estado Laico

George Whitefield (1714-1770) pregando nas colônias britânicas
Apenas quem foi evangélico sabe que a experiência da igreja não é puramente espiritual. E é nesse ponto que erramos como esquerda. A experiência da igreja envolve uma dimensão de resistência que é, de alguma forma, também política. O “não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito” (Paulo para os Romanos, capítulo 12, versículo 2) é uma palavra de ordem poderosa e, por que não, revolucionária, ainda que utilizada a partir de um ponto de vista conservador.

Em nenhuma organização política o homem comum terá protagonismo tão rápido quanto em uma igreja evangélica. O poder que se manifesta pela fé, a partir da suposta salvação da alma com o ato simples de “aceitar Jesus no coração como senhor e salvador”, segundo a expressão amplamente utilizada nos apelos de conversão, transforma o homem comum, que duas horas antes entrou pela porta da igreja imundo, em um irmão na fé, semelhante a todos os outros da congregação. Instantaneamente ele está apto a falar: dá-se o testemunho, relata-se a alegria e a emoção do resgate pago por Jesus na cruz. Entre os que estão sob Cristo, e são batizados por imersão, e recebem o ensino da palavra, e congregam da fé, não há diferenciação. Basta um pouco de tempo, ele pode se candidatar a obreiro. Com um pouco mais, torna-se elegível a presbítero, a diácono, a liderança do grupo de jovens ou de mulheres, a professor da escola dominical. Que outra organização social brasileira tem a flexibilidade de aceitação do outro e a capacidade de empoderamento tal qual se vêem nas pequenas e médias igrejas brasileiras, de Rio Branco, das cidades-satélite de Brasília, do Pará, de Salvador, de Carapicuíba, em São Paulo, ou Santa Cruz, no Rio de Janeiro? Nenhuma.
Se esqueçam dos megacultos paulistanos televisionados a partir da Av. João Dias, na Universal, ou da São João, do missionário R.R. Soares. Aquilo é Broadway. Estamos falando destas e outras denominações espalhadas em todo o território nacional, pequenas igrejas improvisadas em antigos comércios – as portas de enrolar revelam a velha vocação de uma loja, um supermercado, uma farmácia – reuniões de gente pobre com sua melhor roupa, pastores disponíveis ao diálogo, festas de aniversário e celebrações onde cada um leva seu prato para dividir com os irmãos. A menina que tem talento para ensinar, ensina. O irmão que tem uma van, presta serviços para o grupo (e recebe por isso). A mulher que trabalha como faxineira durante a semana é a diva gospel no culto de domingo à noite: canta e leva seus iguais ao júbilo espiritual com os hinos. A bíblia, palavra de ninguém menos que Deus, é lida, discutida, debatida. Milhares e milhares de evangélicos em todo o país foram alfabetizados nos programas de Educação de Jovens e Adultos (EJAs) para simplesmente “ler a palavra”, como dizem. Raríssimo o analfabeto que tenha sido fisgado pela vontade ler “O Capital”, infelizmente. As esquerdas menosprezaram a experiência gregária das igrejas e permaneceram, nos últimos 30 anos, encasteladas em seus debates áridos sobre uma revolução teórica que nunca alcançou o coração do homem comum. Os pastores grassaram

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sexta-feira, 2 de março de 2012

O governo guasca não é petista?

Escrevi este texto no início de março de 2011, também início do governo Tarso no retorno de uma viagem que fiz a Livramento, fruto de conversas com os companheiros. Hoje um colega tuiteiro/blogueiro me passou a postagem que ele havia reproduzido em seu Blogue. Posto novamente, pois se tornou relevante diante dos encaminhamentos e do "Estado de Gréve" declarado pelo Cpers.
 
Ai está a reprodução do texto de aniversário!
 
 
No final de semana carnavalesco na fronteira tive encontros e conversas até certo ponto inusitadas. Pessoas que te imaginam parte ativa do governo, que te fazem perguntas efetivas e cobram posições. É como se você tivesse que responder por governos ou políticas de governo. Numa roda com professores estaduais, alguns filiados ao PT e outros não, fui questionado sobre salários do magistério, piso nacional e plano de carreira. As Professoras mais exaltadas me diziam:

Este é o governo do PT, vocês vão mexer no nosso plano de carreira?

Tarso Genro vai pagar o piso nacional?

Ele fará como Yeda que se propôs a pagar o piso e nos retirar direitos?

Quando o barco começa a fazer água a melhor decisão é colocar o colete salva-vidas, aliás, esta deveria ser a primeira providencia ao entrar no barco. Quase que numa braçada de afogado, brequei a discussão com uma sinceridade inconfundível!

Péra lá! O governo não é petista.

Como assim, não é petista? Me retrucaram.

Vocês ganharam a eleição, tu está querendo nos conversar? Sabemos da tua capacidade de argumentação, entretanto não somos ingenuas amigo. O discurso não era este.

Ok! Quero dizer a vocês que sei do compromisso do governador, não apenas com o piso nacional, mas, também com o plano de carreira do magistério estadual. Entretanto, o governo não é petista. Entenderam? O governador é petista, mas, o governo em sua maioria é não petista.

É bem verdade que a secretaria de educação é do PT, mas, mesmo assim existem vários partidos que compõem esta secretaria.

O governo do Rio Grande é um governo de coalizão, pior, é um governo de “transversalidade”.

Creio que me enrolei mais ao dar este tipo de explicação. Elas voltaram a carga.

Isto, é mais um subterfúgio pra fugir dos compromissos. Tu sempre tenta te safar das discussões e defender teus amigos petistas. Tu também deve estar no governo da Dilma ou do Tarso.

Não. Não é verdade isso. Perguntem aos petistas do governo, eles dirão a vocês que a tal transversalidade existe.

Vocês lembram do Lara? Aquele deputado aqui de Bagé? Aquele que fez um carnaval no 20 de setembro no governo do Rigotto?

Claro que lembramos, me contestam. Ele também foi secretário do governo Yeda.

Pois é, me exibo, já meio recuperado.

Ele também é secretário neste governo.

E, lhes digo mais. Lembram do PDT? Aquele partido que era vice do Fogaça?

Sim, me respondem. O que tem eles?

Estão no governo. São os donos da saúde.

Da saúde? Me questionam.

Sim, da saúde e mais um lote de diretorias nas mais diversas secretarias. Isso é a transversalidade.

É uma salada de partidos misturadas em varias secretarias e departamentos. Digo mais, além dos partidos aliados, dos que concorreram contra o PT, ainda existem os remanescentes do PMDB e PSDB que continuam neste governo.

Portanto, o governo do Rio Grande do Sul, não é um governo petista.

É um governo “transversal e de coalizão”.

Tenho a impressão real que saí desta discussão como mentiroso, conversador.

Serra: 'O Brasil chama Estados Unidos do Brasil'



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quinta-feira, 1 de março de 2012

A desigualdade no Brasil e no mundo

“A desigualdade brasileira está entre as dez mais altas do mundo, apesar de estar no piso das nossas séries históricas.” Assim começa Marcelo Cörtes Neri artigo no Valor sobre o tema..

A grande novidade no mundo é que a desigualdade diminuiu, graças sobretudo à sua diminuição em países como a China, a India e o Brasil, enquanto ela aumenta nos países do centro do capitalismo. A China e a India abrigam a metade dos pobres do mundo, então os efeitos da diminuição da pobreza nesses países é determinante para sua inédita diminuição em escala mundial.

A trajetória da desigualdade de renda no Brasil, de 1970 a 2000, diz o artigo “lembra o cardiograma de um morto”, isto é, nao se moveu, nem com democracia, nem com ditadura, nem com expansão, nem com recessão. “O único sinal de vida foi dado no movimento de concentração de renda ocorrida entre 1960 e 1970, quando o Gini chega próximo a 0,6, e se estabiliza nesse patamar”. Isto, sob o feito do golpe, da repressão aos sindicatos, ao arrocho salarial, à concentração de renda e à exclusão social promovidos pela ditadura, aumentou ainda mais a desigualdade e ficou nesse patamar até os anos 2000.

A desigualdade de renda no mundo começa a cair com o crescimento chinês – ao contrario do que se propala, que teria aumentado na China a desigualdade com o crescimento – indo de 0,63 em 1990 a 0,61 em 2000. A inflexão mais acentuada se dá a partir de 2000, quando a expansão econômica se dá também na India. Na sua combinação, o Gini mundial cai para 0,54 em 2009, chegando ao piso da seria iniciada em 1950.

De forma similar e paralela, a queda brasileira se dá já nos anos 2000. Depois de 30 anos de alta desigualdade inercial, o Gini começa a cair, passando de 0,6 a 0,54 em 2009. A desigualdade continua em queda, em 2010 cruza o piso de 1960 e entra no 12. Ano de queda consecutiva. “Em janeiro de 2012 o Gini atinge 0,519, caindo no ano passado a uma taxa quase duas vezes mais acelerada que dos primeiros anos da década passada.”

O descolamento entre os emergentes e os países do centro do sistema se acentua com a crise atual, em que a aplicação de políticas recessivas e seletivamente cruéis contra os mais pobres. “Os primeiros anos do início do novo milênio será conhecidos nos futuros livros de história brasileira e de história geral , como de redução da desigualdade. Em contraste com os móvitos da ocupação de ícones de riqueza americana e europeia a começar por Wall Street”, termina ele o artigo.

Emir Sader no seu blogue da Carta Maior