domingo, 29 de setembro de 2013

Muitas regras, poucos direitos


As minorias nem sempre precisam de tutelas legais. Se o Estado não regula o matrimônio, por exemplo, não é preciso legislar sobre uniões gays

Há um princípio político que nos leva a acreditar que as lutas políticas caminham necessariamente para a institucionalização de direitos adquiridos. Assim, lutamos para ter direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Como resultado desse princípio, cada vez mais a vida social fica institucionalizada e regulada por cláusulas que visam dar voz ao direito dos grupos, até então, profundamente vulneráveis.
Esse princípio funcionou para a ampliação de direitos em relação às minorias étnicas, religiosas e sexuais. Ou seja, nestes casos, eram demandas direcionadas ao Estado como ator capaz de garantir a universalização real das condições de liberdade exigidas por seus cidadãos. É inegável que tal processo foi e ainda é importante, mas ele poderia ser radicalizado. No entanto, tal radicalização não passa por um aprofundamento dos mecanismos de institucionalização. Ela passa, ao contrário, por uma profunda desinstitucionalização. 

Quando alguém levanta tal ideia, alguns acabam por ver nela uma forma insidiosa de liberalismo. Ou seja, tudo se passa como se estivéssemos diante de uma aplicação do velho mantra: quanto menos Estado melhor. Nesse sentido, desinstitucionalizar significaria deixar a sociedade livre para criar formas de vida, fechando os olhos para experiências de opressão e de vulnerabilidade. Dessa forma, liberais radicais defendem, por exemplo, o direito de uma mulher alugar seu útero, procedimento conhecido como “barriga de aluguel”. Eles afirmam que o Estado não deveria intervir no conteúdo do que sujeitos decidem colocar em relações de contrato, especialmente se ele passa pelo corpo próprio.
Um contra-argumento lembraria que a experiência concreta de alugar o útero é feita, normalmente, por mulheres em extrema pobreza e que praticamente ninguém passa por tal experiência se não estiver em grande vulnerabilidade econômica. Desinstitucionalizar tal “possibilidade de escolha” seria permitir e legitimar a pior de todas as espoliações econômicas.
O argumento é válido. Por isso, poderíamos pensar uma versão de políticas de desinstitucionalização distinta de sua versão liberal. Ela passa pelo retraimento das legislações sobre costumes, família e autodeterminação, e pelo fortalecimento da sensibilidade jurídica contra processos de espoliação. Em outras ocasiões, sugeri dois exemplos. Um ligado à desinstitucionalização do casamento.
Processo no interior do qual o Estado deixa de legislar sobre a forma do matrimônio, guardando-se para legislar única e exclusivamente sobre as relações econômicas entre casais ou outras formas de “agrupamentos afetivos”. Esta seria uma maneira de radicalizar o princípio de abertura do casamento a modelos não ligados à família heterossexual burguesa. Em vez de ampliar a lei para casos que ela não contemplava (como os homossexuais), deveríamos simplesmente eliminar a lei, conservando apenas os dispositivos ligados a problemas econômicos (pensão, obrigações financeiros) e guarda de filhos.

Outro exemplo concerne às legislações sobre porte de signos religiosos, como burcas e véus. Em vez de entrar no guarda-roupa de seus cidadãos e decidir o que eles não devem vestir, o Estado deveria simplesmente garantir a liberdade de ninguém, a partir de certa idade, portar o que não quer (o que leva em conta até mesmo uniformes escolares impostos a adolescentes). Ou seja, no lugar de institucionalizar hábitos, como as vestimentas, por meio do discurso de que há roupas mais opressivas que outras, o Estado simplesmente sai, por exemplo, das discussões surreais sobre o significado de uma burca e contenta-se em garantir um quadro formal de liberdade.
Esses processos de desinstitucionalização permitem às sociedades caminharem paulatinamente para um estado de indiferença em relação a questões culturais e de costumes. Pois questões culturais sempre serão espaços de afirmação da multiplicidade de identidades. Mas a política deve, no horizonte, se descolar dessa afirmação. Por mais que isso possa parecer contraintuitivo, a verdadeira política está sempre para além da afirmação das identidades. O que pode soar estranho para alguns, mas parece-me uma proposição necessária.

Artigo do Professor Vladmir Safatle na Carta Capital

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Simplesmente sensacional os 50 tons de luto


Este é um dos motivos que gosto tanto da internet. Nela tudo pode ser resignificado e os que se sentem donos da verdade sofrem.

Leia e veja mais clicando  aqui 

domingo, 8 de setembro de 2013

Os patriotas que aliviam para a CIA

O governo brasileiro deve um pronunciamento à Nação sobre as violações cometidas pelo serviço de espionagem dos EUA contra o país.

Não há motivo para subtrair à sociedade aquilo que já está em mãos indevidas, fervilha nos bastidores e é intuído do noticiário.

A CIA recolheu ilegalmente e compartilhou, para uso comercialmente desfrutável, dados reservados e informações estratégicas, estas sobretudo de natureza econômica, configurando-se um ato evidente de transgressão de soberania.

Ademais de roubo, puro e simples de segredos comerciais.

A afanosa invasão, como outras mundo afora –ou não havia interesse no petróleo iraquiano?-- faz-se acompanhar do inexcedível traço imperial.

Sempre em nome da luta contra o terrorismo, não se poupou, sequer, o circuito de informação no âmbito da Presidência da República brasileira.

Violou-se correspondência eletrônica reservada da Presidente Dilma.

Aparelhos celulares de seu uso exclusivo foram grampeados; mensagens capturadas. Quem garante que os de acesso particular não sofreram idêntico tratamento?

Não há limites.

Tudo feito com a complacência ou a parceria pura e simples de residentes. Empresas, inclusive.

Carta Maior já havia demonstrado, em reportagens exclusivas e exaustivas, em julho último, o intercurso entre espionagem e corporações norte-americanas no Brasil.

No caso, o protagonista era uma das maiores corporações de consultoria do mundo.

Contratada no governo FHC para ‘pensar’ planos estratégicos, a Booz Allen, na qual trabalhava o ex-agente da CIA, Edward Snowden, operou no Brasil pelo menos até 2002.

De um lado, como guarda-chuva de uma base de espionagem da CIA.

Simultaneamente, como mentora intelectual de uma série de estudos e pareceres, contratados pelo governo do PSDB.

O objetivo era pavimentar o alinhamento carnal do mercado brasileiro com a economia dos EUA. Tracejar a free way da ALCA.

No acervo desse ‘impulso interativo’ listam-se estudos como o dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento.

Realizados por um consórcio liderado pela Booz Allen, sugestivamente, receberiam o nome fantasia, bote fantasia nisso, de "Brasiliana".

Dois eixos centrais da adesão tucana ao desenvolvimento dependente e subordinado beberam desse manancial: o "Brasil em Ação" e o "Avança Brasil”.

A versátil consultoria teria, ainda, robusta influência na reforma do sistema financeiro nacional.

A ênfase nas privatizações de bancos públicos obedecia a diretriz predominante então, de adesão incondicional à supremacia das finanças desreguladas.

O que antes era lubrificado assim, por uma afinidade de propósitos e a natureza gêmea dos governos dos dois lados, hoje só se viabiliza na violação delinquente de informações que lastreiam o poder de Estado e o poderio econômico da Nação.

Um foco prioritário do grampo é o pré-sal.

As petroleiras internacionais querem saber se a regulação soberana das maiores reservas descobertas no planeta, no século XXI, tem lastro político e financeiro para se sustentar.

Ou por outra, se os índices de nacionalização que guarnecem o impulso industrializante embutido nessa regulação vieram para ficar.

Interessa, naturalmente, o calendário da exploração, o fôlego da Petrobrás para assumir a condição de parceiro cativo de qualquer licitação, ademais das avaliações sigilosas das novas descobertas em curso.

Enfim, tudo o que possa ser útil à apropriação da maior faia possível de uma riqueza estimada, por enquanto, em até 60 bilhões de barris.

Leia-se esse número seguido da informação de que a matriz energética do planeta ainda depende 57% do petróleo.

O resultado explica a gula que ordenou as violações, o despudor das escutas palacianas e a ousadia das decodificações perpetradas pela espionagem gringa.(Leia sobre esse tema de extrema gravidade a reportagem de Marcelo Justo, direto de Londres, nesta pág)

Embora revelados originalmente pela TV Globo, de conhecidas tradições, avulta desse episódio a reação lhana e a cordura no trato que o assunto mereceu da parte de colunistas da indignação seletiva.

A exemplo deles, nenhum editorial, salvo engano, tampouco manchetes garrafais foram hasteadas no alvorecer nacional, com as cores da indignação patriótica.

Animadoras de programa de culinária não trocaram o colar de tomate pela túnica verde amarela do protesto contra Obama.

Uma sigla dotada de forte simbologia antipopular como a CIA foi poupada na identificação do braço operante da espionagem contra o país.

Em plena Semana da Pátria, a americanofilia do jornalismo embarcado aliviou para a CIA, que vasculha o pré-sal.

A convocação maciça dos protestos pela mídia --de resto, um fracasso de público e crítica, a evidenciar a fraude de sua narrativa do Brasil aos cacos -- não alinhou entre as palavras de ordem qualquer menção à violência da espionagem gringa.

Não se diga que se trata de um traço constitutivo de serenidade editorial.

Recorde-se, por exemplo, a reação beligerante da emissão conservadora em maio de 2006, quando a Bolívia decidiu nacionalizar a exploração dos negócios de petróleo e gás no país.

O presidente Evo Morales ordenaria a ocupação pelo Exército dos campos de produção das empresas estrangeiras no país, entre elas a brasileira Petrobras.

Colunistas de brios nacionalistas até então desconhecidos, desembainharam seu amor recolhido pela estatal criada por Getúlio.

E cobraram do então governo Lula uma intervenção enérgica contra o atrevimento boliviano.

Respingava da ira espumante o desejo incontido de uma invasão reparadora.

Idêntico brado varonil ecoa com regularidade, sempre que se trata de cobrar do governo 'uma resposta' às medidas protecionistas da Casa Rosada, para o que restou da manufatura argentina depois de Menem & Cavallo.

Nem é preciso regredir tanto no calendário.

Tome-se o paradoxo dos dias que correm, protagonizado por jalecos corporativos, americanófilos golberianos e colunistas de baixa densidade intelectual e enorme disposição servil.

Formou esse pelotão uma verdadeira trincheira de animosidade ‘patriótica’ contra a ‘invasão negreira’, assim denominado o desembarque dos doutores cubanos engajados no programa ‘Mais Médicos’.

Pendores nacionalistas desconhecidos até então emergiram à flor da pele.

A aguerrida defesa da extensão dos direitos trabalhistas aos visitantes ecoava das mesmas gargantas, ásperas, de tanto requerer a extinção desse usufruto ao assalariado nacional.

A ausência do mesmo arrojo patriótico, quando o assunto é o estupro de sigilos nacionais por uma potencia de conhecidas tradições no ramo da sabotagem e derrubada de governos, soaria apenas desconcertante.

Não fosse também oportuno para discernir no interior do nacionalismo etéreo que reveste o 7 de Setembro, aquilo que, de fato, é o interesse do povo brasileiro, daquilo que se comete em seu nome.
 
 
Por Saul Leblon no Blog das Frases

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Terceiro trimestre “desastroso” não é previsão econômica. É vontade, só

 
O colunista Paulo Moreira  Leite, da Istoé, comenta a reação dos “analistas de economia” ante o crescimento de 1,5% do PIB brasileiro no segundo trimestre do ano, que só ficou abaixo do chinês.
Ele se impressiona como o “muxoxo” da turma da catástrofe.
Nenhuma surpresa, Paulo.
 
Como você mesmo observa, este não é um jogo de lógica.
 
Não há nenhuma lógica em prever um terceiro trimestre desastroso.
 
Os mercados mundiais estão em aquecimento: China, EUA e Europa. O preço das principais commodities de exportação brasileiras, soja e minério de ferro, está em recuperação, depois de cair durante todo o segundo trimestre. A balança comercial inicia uma recuperação que alivia um pouco o déficit em transações correntes do país, que é um dos principais problemas que o câmbio subvalorizado nos trazia.
 
Também a evidenciação, por mais que a mídia o apregoasse, de que não há nenhum descontrole inflacionário vai ajudar a atividade econômica.
 
O jogo é outro, de expectativas.
 
Que, há tempos, apenas variam entre o caos e o desastre nos jornais brasileiros.
Quando Lula foi à TV no final de 2008, pedir que as pessoas confiassem na economia e seguissem transformando em consumo seus ganhos, jogou o jogo anticatastrofista e foi ridicularizado com a “marolinha”.
Não estamos diante de nenhum boom econômico, mas certamente estamos bem longe de um bum!

 

E o pibinho, hein?

Paulo Moreira Leite
 
Três dias depois da notícia, ainda estou chocado com a resposta de nossos analistas de economia diante da descoberta de que o PIB teve um crescimento espetacular no último trimestre, chegando a 1,5%. 
Se você somar os últimos 12 meses, chega-se a um índice total de 3%, o melhor desde a posse de Dilma. 
 
Este dado torna a previsão de 3% de crescimento anual de 2013 bastante realista. Claro que nada está assegurado nas apostaseconômicas nos dias atuais, quando o cenário externo é um horror e o ambiente interno exibe fissuras e sinais de desconfiança. 
 
Ainda assim, seria razoável imaginar que nossos analistas tivessem disposição para bater no peito e fazer autocrítica de forma clara e absoluta. Ninguém enxergou uma dinâmica que se movia na indústria, no comércio, nos serviços… 
Ninguém precisa chegar às humilhações da escola stalinista, onde se formaram tantos analistas convertidos ao conservadorismo na idade adulta, mas seria razoável admitir que seus termômetros perderam a confiabilidade.
 
Nada disso. A reação padrão é apresentar uma serie de poréns, mases, todavias, contudos, para o futuro.
Um deles chegou a escrever, como se fosse uma professorinha de primário segurando a palmatoria, que “finalmente” a economia cresce.
 
Finalmente? O pessoal passou os últimos meses anunciando que o país estava à beira do abismo e agora estamos no “até que enfim”. 
É certo que esse ritmo de 1,5% não será mantido nos próximos meses. Ninguém imagina isso.
 Mas o esforço para transformar a economia num alvo fácil para o ataque da oposição em 2014 torna-se mais difícil.
 
Ao fazer uma aposta econômica errada, nossos analistas cumprem um papel complicado.
 Num universo em que a confiança cumpre uma função essencial, os maus profetas ajudam a transformar o bom em regular, o regular em ruim, o ruim em péssimo.
 Criam um ambiente de desânimo, de falta de vontade, de descrédito. Isso é ruim para o país.
 
A agenda muda. O sujeito que ia ao banco para fazer um empréstimo para ampliar seu investimento para no meio do caminho. Aquele que iria contratar uma nova leva de funcionários coloca as barbas de molho.
 
Os aumentos de salário ficam mais difíceis, as negociações sindicais se mostram mais difíceis e emperradas.
Este é o problema.
 
Por: Fernando Brito