terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Um banqueiro alerta: o mundo vai murchar. Vamos aderir ou lutar?


Saltar para o vazio ou reconstruir as bases do desenvolvimento? O divisor de águas é a Petrobras: não capitalizar a estatal é enterrar a nação com ela.




Foi preciso um banqueiro, Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco, dizer algumas coisas sonegadas pela mídia até agora, para, finalmente, a natureza demencial de um diagnóstico autodestrutivo ser deslocada do centro do debate e emergir aquilo que parte da esquerda tem ecoado solitariamente há algum tempo.
Não é o ‘lulopopulismo’ que está levando o Brasil ao desmanche.

O Brasil tem seus problemas --uma elite predadora e provinciana, um dos principais.

Mas é o mundo capitalista que tropeça de novo na própria lógica e conduz as nações a uma recidiva da crise global de 2008.

Os vetores desta vez são a freada chinesa e o mergulho sem termo das cotações do petróleo.

A embicada do barril –de US$130 para menos de US$30—tem razões de ordem geopolíticas e comerciais.
E escancara a brutal deflação de ativos, isto é, o mergulho conjunto de todas as bolhas especulativas --as novas e as suspensas mas não equacionadas desde 2008.

Todas elas agora murcham conjuntamente, perfuradas pela agulhada do último esteio de demanda agregada (consumo e investimento produtivo) do planeta: a China.

Segunda maior economia do globo, a China era responsável por 50% do consumo das principais matérias primas e alimentos negociados no mercado internacional.

O transatlântico chinês vive a indigestão de um superciclo de investimentos (por décadas o país investiu mais de 45% do seu PIB), catalisada pelas restrições que a crise de 2008 impôs às exportações da nova fábrica do mundo.

O conjunto impõe ao gigante asiático reordenar sua rota de longo curso.

A opção é a maior ênfase no consumo interno.

Significa investir menos e comprar um volume menor de matérias-primas --com exceção de alimentos, cujos produtores todavia serão atingidos de forma equivalente pela queda das cotações, agora no menor patamar dos últimos 16 anos, depois de caírem 19% em 2015, a quarta regressão anual sucessiva, segundo a FAO.

Uma cadeia de placas tectônicas enruga e retrai o assoalho econômico de todo o planeta.

Projetos, governos, empregos, riquezas estão sendo arrastados para o grande sumidouro de um capitalismo cuja viabilidade repousa na autodestruição cíclica.

Estamos a bordo de uma delas.

O ralo sistêmico engolfa e borbulha enquanto o arguto sociólogo FHC, seu poleiro de tucanos adestrados em truques institucionais, a mídia que lhes dá manchetes e rodelas de banana, e seu colunismo de linces analíticos, distraem a opinião pública e dispersam a prontidão nacional, com truques e cortinas de fumaça que subordinam o principal ao secundário.
A farsa anunciada em manchetes faiscantes é essa que os Marinhos, os Frias e os Mesquitas repicam diuturnamente com seus chicotinhos de domadores do discernimento social: ‘Allons enfants, vamos abriu a janela de oportunidade para destruir o PT e restaurar a monarquia plutocrática neoliberal; aqui e quiçá em toda a América Latina bolivariana –Macri, mostre-lhes como se fazia nos anos 90’.

O planeta avança em rota de colisão histórica com geleiras recessivas, uma subsequente à outra. E eles distraindo a plateia, enquanto hienas dos mercados fazem o serviço final: devorar o fígado, o coração, a mente, desta geração e da próxima.

Não há luz no fim desse túnel, advertiu o banqueiro Trabuco, em Davos, uma voz sistêmica solitária a sacudir os jornalistas de banco pelos ombros.


O circo pode pegar fogo, avisa o presidente do Bradesco.

Em economês: ‘A estabilização (desta vez) será no fundo do poço’, sinaliza de forma educada para dizer aos petizes da mídia que a tergiversação sobre as determinações globais da crise pode ter consequências arrasadoras.

Gente como Trabuco quer preservar a riqueza financeira –antes de mais nada; mas sabe que até para isso será preciso enxergar além do ‘lulopopulismo’

Enquanto o colunismo fantasia bolivarianismos & outras tucanolices (tolices tucanas), massas de forças descomunais semeiam a desordem neoliberal.

O vórtice da incerteza escapou da jaula

Ao acionar o retraimento do crédito bancário às empresas, ligou um poderoso difusor sistêmico de retração em cadeia.

Apertem os cintos –avisou Trabuco sobretudo aos seus pares, mas também à elite cega.

Como se temia, uma recidiva da crise mundial encontra Estados e bancos públicos exauridos, ainda não recuperados do esforço unilateral para mitigar os gargalos dos últimos anos.

É o caso do Brasil.

Em 2008 o país foi um dos que melhor respondeu à retração do crédito privado, estimulando o consumo e o investimento, com a expansão acelerada dos bancos estatais.

O crédito imobiliário crescia a 45% ao ano.

Além de expandir o volume, o sistema financeiro público passou a oferecer taxas de juros e spreads menores.

Enquanto o setor público avançou na oferta de liquidez, o setor privado recuou.

Hoje ainda os bancos públicos lideram a oferta de crédito (em mais de 50% até 2014), enquanto o BNDES – um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo, maior que o Banco Mundial-- mantém-se solitário na oferta de recursos indispensáveis aos grandes projetos de longa maturação.
A recidiva da crise, em meio à mais frágil convalescença de uma recessão capitalista desde 1929, pega esse aparato anticíclico duplamente vulnerável.

De um lado, pelo esgotamento da receita fiscal, precipitada por uma recessão ingenuamente oferecida pelo governo, em troca da indulgência do mercado --que nunca veio e nem virá.

O flanco mais deletério, porém, vem do cerco político demencial das milícias neoliberaloides, acantonadas na mídia e nas fileiras rentistas.

Ante a tempestade que se aproxima, requisitam todos os botes à salvação da riqueza financeira e à destruição do que denominam de ‘voluntarismo intervencionista’ .

‘Mais juros e mais recessão; à purga pelo mercado, --custe o que custar!’

O correlato político disso emergiu na República do Paraná.

Autonomeados senhores da vida e da morte da nação, procuradores ecoam hinos purificadores, ao pé da fogueira onde pretendem imolar os alicerces do petróleo brasileiro, da construção pesada, do presente e do futuro...

Cada elite tem o Rasputin que merece.

Essa é a borda do costão. Pedriscos escorregam sob os pés do país.

E os meninos do colunismo econômico dão duro para esgotar a capacidade de resistência do Estado , visualizando no despinhadeiro o ensejo de um repto demolidor.

A desforra do fracasso de 2002, 2005, 2006, 2010 e 2014 , quando tudo parecia apontar para o fim do ‘lulopopulismo’.

A correlação de forças desta vez tem tudo para esgarçar o fiapo de soberania diante do novo arranque da crise.

O PT é esse fiapo no Brasil. 

‘Era’ -- ouvimos diuturnamente das gargantas sôfregas à direita e das boas intenções trôpegas, à esquerda, nas vozes que acham indiferente um governo Dilma/Lula ou Aécio/FH; Cristina/ ‘La Cámpora’, ou Macri/fascistas.

A primeira atribui à heresia intervencionista a raiz da crise ‘endógena’ brasileira.

A segunda considera a denúncia do lulomercadismo –ou de Haddad, o barrabás do passe livre-- a chave mestra para resolver pendências com o capitalismo global, que tem no Brasil a unha encravada mais incômoda da AL.

O que o banqueiro Luiz Carlos Trabuco veio dizer em linguagem mais ou menos explícita é que essa crosta ideológica –da qual é personagem--- corre o risco de acuar a capacidade de reação do país, pondo a perder mais que o ‘lulopopulismo’.

Está em jogo a própria capacidade de o capitalismo brasileiro honrar a promessa de riqueza contida nas montanhas de ‘ativos’ financeiros em mãos do mercado nesse momento.

Esse é o ponto do desmonte em que nos encontramos.

O que se discute é se vamos para a terra arrasada, como pedem as narinas borboletantes do mercado-golpismo; ou se a nação resistirá ao botim em marcha, recusando-se a sacrificar o que se construiu nos últimos 12 anos, à revelia do mercado.

Inclua-se nessa transgressão:

- 60 milhões de novos consumidores,a cobrar cidadania plena;

- 20 milhões de novos empregados formais;

- um salário mínimo 70% maior em termos reais;

- um sistema de habitação popular ressuscitado;

- bancos públicos a se impor à banca privada;

- uma Petrobras e um BNDES fechando as lacunas da ausência de instrumentos estatais destruídos no ciclo tucano;

- políticas de conteúdo nacional a devolver um impulso industrializante ao desenvolvimento brasileiro;

Etc.

É nessa hora que um pedaço da crítica progressista ao ciclo de governo do PT pode resvalar para a mesma avaliação conservadora do período.

O risco, repita-se, é subordinar a ação de governo a soluções de mercado para desequilíbrios macroeconômicos que só a luta política pode escrutinar.

De certa forma foi isso que Dilma tentou nos últimos 12 meses com as consequências devidamente estampadas em manchetes não propriamente indulgentes.

O mundo capitalista se contorce; um arrastão de energia devastadora afastou o mar da praia onde flutuava a embarcação do crescimento global.

O cenário internacional desandou para um novo tsunami.

A China resolveu cuidar da própria encruzilhada; a Europa que fingia respirar voltou ao balão de oxigênio; a deflação de ativos vai rebater na velocidade da retomada norte-americana.

Tudo a desaconselhar o arrocho pró-cíclico evocado pelos magos da peregrinação redentora às catacumbas e às bancarrotas.

Desde 2008 eles advertem: a resistência do Brasil à crise é um crime contra o mercado.

Nenhuma voz dentro ou fora de Brasília soube até agora salgar esse diagnóstico da crise ‘endógena’ com a salmoura pedagógica das evidências opostas.


É para isso que existe governo.

Para esclarecer a opinião pública quando o futuro da nação balança perigosamente no despenhadeiro das ameaças e das manipulações.

Não significa mistificar a cota doméstica de erros e responsabilidades.

Mas, sim, separa-la de interesses que não são os da nação.

Sim, escolhas estratégicas são mediadas pela correlação de forças.

Mas um pedaço importante da correlação de forças se define no diálogo com a sociedade.

Disputar as expectativas, em certos momentos, é tão decisivo quanto ajustar as linhas de passagem de um ciclo para outro.

Um governo que toma decisões ancorado em diálogo direto com suas bases, apoiado por elas, irradia uma capacidade de comando que desencoraja o assalto conservador.

Hugo Chávez? Não, Roosevelt, da ‘Conversa ao Pé da Lareira’, de 1933, o programa radiofônico com o qual o presidente venceu a Depressão de 29 disputando o imaginário social com o mercado e seus abutres.

Cada vez que falava à Nação, a voz de Roosevelt dizia coisas inteligíveis à angústia do pai de família que acordara empregado e fora dormir temendo ser demitido. Suas mensagens e políticas pavimentavam o futuro sem negligenciar a emergência. Traziam respostas para o presente.

O quadro hoje é outro, comparado à capacidade fiscal do Estado em 1929 ou 2008?

Sempre é outro.

De novo: é para isso que existe governo.


Se a história fosse estável e previsível, bastariam burocracias administrativas.

Há duas formas de descascar o abacaxi.

A escolha conservadora dispensa o penoso trabalho de coordenação defensiva da economia pelo Estado, ademais de elidir a intrincada mediação dos conflitos do desenvolvimento em um hiato de crescimento.

O que o jogral conservador reclama é um arrocho neoliberal com desmonte do que sobrou de ferramenta pública para o desenvolvimento –‘o entulho intervencionista que possibilitou Lula’.


Por isso o desmonte da Petrobras é um divisor de águas –econômico, político e simbólico.

Até quando o governo vai adiar a capitalização da empresa?
Será necessário oferecer-lhe o argumento do Proer – o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro, criado por FHC, em 1995, que custou ao país cerca de R$ 200 bi em dinheiro de hoje?

Salvar a banca era importante – fortalecer a Petrobrás não é? Por quê?

Não estamos falando apenas de um negócio de sucção de óleo a US$ 25/barril (ainda assim competitivo a um custo do pre-sal a 1/3 disso, desde que capitalizada a Petrobras).

Estamos falando justamente do oposto martelado pela fuzilaria conservadora nos dias que correm.

Qual seja, a natureza decisiva da presença do Estado na luta pelo desenvolvimento.

Transformar a história de sucesso da Petrobras em um desastre de proporções ferroviárias é um requisito para desautorizar essa evidência histórica que o pre-sal veio ratificar

Não por acaso, o martelete contra o ‘anacronismo intervencionista do PT’ interliga a ação dos procuradores de Moro à matilha dos coveiros da estatal.

Ao propiciar não apenas a autossuficiência, mas o potencial de um salto tecnológico, capaz de contribuir para o impulso industrializante de que carece o país, a Petrobrás reafirma a relevância insubstituível da presença estatal na ordenação do desenvolvimento econômico. 

Há problemas?

Sim; a empresa arcou com sacrifícios equivalentes ao seu peso no país, vendendo combustível abaixo do custo de importação por quatro anos seguidos.

Ainda assim, até 2013 foi a petroleira que mais investiu no mundo: mais de US$ 40 bilhões/ano, o dobro da média mundial do setor.

E se tornou campeã mundial no decisivo quesito da prospecção de novas reservas. Com resultados que retrucam o jogral do ‘Brasil que não deu certo’.

O pré-sal já produz cerca de 1,1 milhão de barris de óleo equivalente por dia.

A equação posta pelo novo estirão da crise mundial não admite meio termo.

Capitalizar a Petrobras é dar um sinal de que a democracia brasileira não abdicou de reordenar seu desenvolvimento.

Não fazê-lo emitirá um bônus de reforço à prostração. 

A mãe de todas as batalhas gira em torno dessa questão.

Há pouco tempo para escolhas.

Mas há muito a perder se elas não forem feitas em defesa do Brasil.

Por Saul Leblon na Carta Maior 


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Uma conversa interditada: o país que o Brasil poderia ser


Em seu primeiro artigo em 2016, FHC conseguiu sepultar a América Latina em uma crise 'terminal', sem dedicar uma única linha à crise global.



O hiato da passagem de ano, quando a sociedade se recolhe e o Estado Midiático opera a meia fase, produz um ensaio de desintoxicação que desnuda a asfixia da norma.

A norma é o agendamento diuturno da sociedade por interesses unilaterais que se apresentam como os de toda a nação.

O objetivo da parte que se avoca em expressão do todo é claro: interditar a conversa urgente da população brasileira com ela mesma.

Trata-se e barrar adesões à insurgência contida na interrogação: como se faz o país que o Brasil poderia ser, mas ainda não é?

O monólogo do enredo conservador impõem-se como o garrote vil do discernimento popular.

Desmoralizar partidos (não raro com a ajuda dos mesmos) é um dos seus ferrolhos.

Espetar o carimbo da ‘disfuncionalidade populista’ em tudo o que não for ‘mercado’, outro.

Dissociar os desafios nacionais do neoliberalismo global em pane, a engrenagem mestra do conjunto.

Nada disso se faz sem a mídia azeitada, sistematicamente abastecida de insumos condizentes.

Em seu primeiro artigo em 2016, publicado neste domingo, o tucano Fernando Henrique Cardoso, brindou-nos com proficiente radiografia do que classifica como colapso do bolivarianismo na América Latina.

‘Este populismo começa a se desfazer. São sinais promissores’, desancou alvejando regimes ‘anticapitalistas e anti-norteamericanos’.

‘A confusão entre populismo e políticas “de esquerda”, pontificou o paladino das privatizações, ‘baseia-se em um equívoco: o de que são “progressistas” medidas que propiciam melhoria imediata das condições de vida, mesmo sem condição de se manter no tempo’.

‘Sem o charme do populismo mais vigoroso e com o Tesouro vazio, como manter a “hegemonia” do PT? Impossível’, ejaculou, algo precocemente, para encerrar sua mensagem às tropas aliadas do golpismo e da vigarice:

‘Comecemos 2016 com ânimo, imaginando que pelo melhor meio disponível (renúncia, retomada da liderança presidencial em novas bases, ou, sendo inevitável, impeachment ou nulidade das eleições) encontraremos os caminhos da coesão nacional’.

O lince da sociologia da dependência conseguiu sepultar a AL em uma crise ‘terminal’, sem dedicar uma única linha causal ao entorno.

Ou seja, o mundo exaurido pela entropia dos livres mercados, aqui vendidos como alternativa ao ‘desastre petista’.

A singela omissão ao capitalismo realmente existente seria retificada pelos fatos no dia seguinte.

Nesta 2ª feira, um jornalismo useiro e vezeiro em vender a ideia de um Brasil-ilha-de crise (cercado-de-prosperidade-por-todos-os-lados), acordou sobressaltado com o estrondo na porta das redações.

Era o despencar de 7% da bolsa chinesa, associado a uma desvalorização recorde do yuan, mais um pico de baixa das encomendas à indústria norte-americana, que teve em dezembro a maior queda em seis anos, combinada à estagnação das exportações da maior economia da terra.

Peculiaridades locais à parte, o pano de fundo é a mais longa convalescença de uma crise capitalista desde 1929.

A impulsioná-la, uma demanda global estrangulada por empregos tíbios, classe média em decadência e ensaios de novas bolhas especulativas por todos os lados, fruto de um capital parasitário que se autovaloriza sem agregar riqueza à economia real.

‘Não me passou’, poderia dizer o tucano detentor da mais alta patente intelectual da direita brasileira.

Seu ego não o permite e nenhum colunista isento irá cobrá-lo.

Une-os o mesmo diagnóstico conveniente à elite e ao holerite.

Não debater a fundo a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro reduz uma transição de ciclo econômico a um desastre petista, que a volta do PSDB cuidará de reverter.

O que isso significará na prática pode ser lido antecipadamente no noticiário que vem da Argentina.

Desmonte de políticas públicas. Reforço do monopólio midiático (lá afrontado). Instrumentalização da justiça. Desvalorização fulminante do poder de compra das famílias assalariadas. Liberação dos mercados. Revogação de impostos aos ricos e de subsídios que beneficiam os pobres. Estrangulamento fiscal do Estado e provável novo ciclo de alienação do patrimônio público.

Tudo isso faz do macrismo o laboratório de ponta da restauração neoliberal, que o martelete midiático preconiza como panaceia para o Brasil. 

O noticiário morno da passagem do ano ressaltou, por contraste, o ensurdecedor tropel dessa catequese cotidiana.

Se quiser escapar à armadilha do arrocho, o país precisa desesperadamente abrir canais alternativos para estabelecer uma conversa ecumênica, direta, democrática sobre o passo seguinte do seu desenvolvimento.

Não se recuse aqui a necessidade de uma reordenação estrutural para que o país possa retomar sua construção. Ela terá custos; envolve garantias e concessões, evoca o alongamento de ganhos no tempo, exige grandes pactos feitos de salvaguardas e metas para emprego, salários, juros, inflação, tarifas e resultados fiscais.

Trata-se de uma negociação da democracia com o mercado e o Estado.

Não é um jogo em que o vencedor leva tudo, mas uma repactuação mediada pela correlação de forças na sociedade.

O sacrossanto ‘ajuste’ apregoado pela mídia, ao contrário, equivale à paz salazarista dos cemitérios.

O povo ocupa o posto de defunto e o dinheiro grosso, o de coveiro.

Desenvolvimento é tudo menos a paz mórbida suspirada pela bonança do privilégio.

Desenvolvimento consiste em superar estruturas existentes e criar outras novas.

Em sociedades marcadas pela contraposição de interesses de classe, imaginar que isso ocorrerá em perfeito equilíbrio é como vender o elixir dos mercados racionais.

Curto e grosso: o que hoje se chama de ajuste, como se fora uma panaceia das boas técnicas do ramo, nada mais representa do que a restauração plena do neoliberalismo em diferentes nações da América Latina.

O governo Dilma já viveu esse experimento em seu primeiro ano de mandato.

A miragem se desfez, como é sabido, na forma de mais crise e mais impasses.

A meta-síntese do processo, o superávit fiscal de 1,2% do PIB, foi revogada pela impossibilidade física de se compatibilizar recessão com a arrecadação.

Hoje, os milicianos do Estado Midiático, entre eles, moças e rapazes assertivos na defesa do mercado financeiro, declaram-se ‘surpresos’ com o tamanho do buraco escavado pelos cortes de gastos recessivos e juros siderais.

Distraídos, tampouco haviam percebido o tamanho da contração internacional que há oito anos comprime as fronteiras da economia global e já derrubou as cotações de commodities ao menor nível em 16 anos.

É nesse lusco-fusco surpreendente para quem ainda acha que o Brasil é uma ilha de crise em um planeta cercado de prosperidade, que o alvorecer de 2016 oferece uma nova chance de o governo abrir um calendário de conversas substantivas com as forças da sociedade.

Assunto: as linhas de passagem para o país atravessar o pântano mundial sem abdicar de construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.

Diante das circunstâncias e do adiantado da hora só há uma forma de fazê-lo.

A Presidenta Dilma precisa falar regularmente à sociedade; em cadeia nacional e em fóruns tripartites setoriais.

Se quiser pautar a mídia sem se deixar pautar por ela, o governo deve reconhecer na democracia o único contraponto à ditadura do mercado e acioná-la como fator hegemônico na reordenação do curso do desenvolvimento.

FHC, Serra e outros valem-se da névoa espessa criada pelo próprio noticiário para insistir em políticas e agendas condenadas, mas ainda não substituídas no plano mundial --o que dificulta a sua ruptura definitiva no país e, mais grave, no próprio campo progressista.

A expectativa de que o vendaval pudesse amainar depressa ancorava-se, como se viu, na subestimação da dominância financeira intrínseca à natureza do problema, que agregou desafios adicionais às políticas contracíclicas.

Desfeita a miragem de uma turbulência passageira verifica-se que os avanços de agora em diante serão mais difíceis.

Após vitórias significativas contra a pobreza, ir além, em tempos de vacas magras, no pasto ralo das commodities, implica afrontar a desigualdade nos seus alicerces estruturais. Ou seja, ali onde se sedimenta o estoque da riqueza, na esfera fundiária, urbana, patrimonial, tributária ou financeira.

Fábulas amenas de retorno a um mundo de desconcentração financeira amigável e produtiva, sob o comando dos mercados, custam caro.

No final, não entregam o prometido.

É esse purgatório em dimensões compactas que o Brasil está a experimentar.

Recidivas da crise mundial –como as desta 2ª feira de bolsas em transe-- evidenciam a urgência de um poder de coordenação, capaz de colocar as coisas no papel de coisas; e devolver à sociedade o comando do seu destino.

Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno desse nó górdio.

A mídia tanto insiste que às vezes até setores do governo e do PT parecem acreditar na mística dos mercados racionais, que farão as melhores escolhas para o bem da sociedade.

O país precisa desesperadamente estabelecer uma agenda de conversas entre os brasileiros sem ser pautado pela mistificação midiática.

Só há uma pessoa capaz de puxar essa conversa porque foi legitimada na urna para fazê-lo: a Presidenta da República.

Companheira Dilma Rousseff, o bonde da história está passando a sua frente, pela segunda vez.

Tenha certeza, não haverá uma terceira.


por: Saul Leblon na Carta Maior