O palanque de 2018 não pode mistificar a tarefa de vencer a coalizão do dinheiro com a treva: nada ocorrerá sem uma ampla organização de base da sociedade
A forma como uma sociedade reage ao assalto aos seus direitos e liberdades; o equilíbrio entre a autocrítica de seus flancos e a consciência da sabotagem ao seu futuro; a capacidade, sobretudo por parte de seus segmentos organizados e progressistas, de hierarquizar essas lições e a partir delas estender as linhas de passagem da prostração à resistência --e desta à retomada da iniciativa política, configuram o passo decisivo ao repto que pode devolver a um povo a força e a esperança para comandar o seu destino.
O repto aos ladrões da esperança, um ano e meio após o golpe que derrubou a Presidenta Dilma Rousseff e a menos de 12 meses das eleições presidenciais de 2018, configura um desafio em aberto na vida brasileira.
Contribuir para esse amadurecimento programático e organizativo é a razão de ser do retorno editorial de Carta Maior, após três meses de ausência ditada pela exaustão de seus recursos e de sua logística.
As reflexões do filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo sobre as derrotas da esquerda nos auxiliam nesse estirão premente.
Losurdo é um garimpeiro das minas abandonadas da história.
Uma de suas incursões frequentes são os escombros da Revolução Soviética e do movimento comunista internacional. Ambos capturados por um aparato conservador que logrou impor a versão da ‘auto-implosão’ ao alvo do cerco militar, econômico e ideológico mais ostensivo do século XXI.
A altivez do pensador marxista não ignora os erros –degenerações— entrelaçados ao desenlace sabido da república soviética a partir de 1991.
Mas repisar o óbvio não é o foco do seu carbureto reflexivo.
No livro ‘Fuga da História’, logo na introdução, ele expõe a visão contraposta a dos necrológios de pétreas certezas que povoaram a mídia agora em novembro, no centenário da revolução russa.
O que ele denuncia é justamente o ardil inscrito nessa unanimidade.
Em nome da rejeição ao estalinismo, sublinha o filósofo e historiador, abstrai-se a virulência contra o estado soviético, o garrote capitalista sem trégua, suas consequências materiais e ideológicas na deformação denunciada de uma experiência de poder inédita na história.
Mutatis mutandis, Losurdo estende esse pano de fundo à compreensão histórica do rumo tomado pelas revoluções chinesa, cubana e sandinista.
Mas poderia citar, igualmente, o jogo de gato e rato imposto aos ciclos progressistas recentes do Brasil, Argentina e Venezuela, até a ruptura consumada ou em acelerada obra de pavimentação.
Seu alerta é de enorme pertinência nesse momento em que a reunificação das forças progressistas brasileiras pode ser a diferença entre a vitória ou a consolidação do golpe de 2016 em 2018.
Há riscos latejantes.
A rendição ao jogral que pretende encurralar a autocrítica progressista até o regresso a um marco zero da sua história,onde se entrelaçam as raízes dos ideais puros, ‘maculados pela prática delituosa do PT e assemelhados’, é uma delas.
Não se trata de mitigar a autocrítica necessária desse ciclo.
As forças progressistas que por mais de uma década estiveram à frente da nação tem contas a prestar para que o comboio da história possa reordenar seu rumo.
Esse sempre foi e continua a ser o compromisso editorial de Carta Maior.
Abstrair as consequências da sabotagem violenta ao degelo social e político iniciado em 2003, porém, ao contrário de radicalizar, impede a autocrítica efetiva que o passo seguinte da luta social brasileira requer.
Para não haver dúvida: quem confiou na indulgência das elites para levar adiante a construção de uma sociedade mais justa na oitava economia capitalista da terra não pode adiar a revisão de seus conceitos.
E não bastará faze-lo na chave retórica.
Desdobramentos efetivos terão que emergir na práxis.
A impactar desde logo a organização e o método da luta eleitoral em 2018.
E sobretudo o enquadramento desse embate em um plano mais amplo de construção de uma verdadeira democracia social no país.
Sim, o poder é o alvo permanente da luta política – não se transforma a sociedade sem conquistar e mudar os mecanismos de decisão que a reproduzem.
Mas não a qualquer custo. E não de qualquer forma.
A desilusão política da sociedade brasileira exigirá mais que pragmatismo de quem se dispõe a liderar negociações e alianças em seu nome.
As enormes pendências agravadas pelos revezes políticos desde 2014 –incluindo-se o desastroso ajuste adotado após a reeleição da Presidenta Dilma—cobram diretrizes mudancistas claras.
Não se trata de recusar a negociação ou a aliança.
Mas, sim, de conduzi-las com o leme de corajosas propostas de enfrentamento dos abismos sociais e políticos que mantém o povo brasileiro na soleira da porta, do lado de fora da nação.
Relevar esse divisor seria assinar o contrato de uma nova derrota –mesmo vencendo, como ensina a lição amarga de 2014.
A eleição presidencial de 2018 pode ser um catalisador pedagógico dos conflitos anestesiados pela rotina bruta imposta à nação.
Oferece-se como um mirante privilegiado dos gargalos e interesses que constrangem e esfolam a pele e a alma do seu povo.
Sem ilusões, porém.
Sozinha elas não vai resolve-los, tampouco será capaz de coagular seu agravamento, seja qual for o resultado das urnas.
Deriva daí um leque de desafios estratégicos à participação das forças populares no pleito de outubro próximo.
Mesmo para quem nunca acreditou na indulgência das elites locais e estrangeiras impressiona a voltagem da rapina em curso contra as conquistas recentes e os direitos históricos do povo brasileiro.
A escalada conservadora exibe a sofreguidão dos ladrões diante do cofre.
Há frêmito de narinas borboleteando no assalto aos direitos sociais.
Age-se como se não houvesse amanhã.
Igual embriaguez exala dos tribunais e das togas encarnadas no papel de ‘garante’ do golpe de Estado de 2016.
O resultado envergonha a nação aos olhos do mundo.
Um governo apoiado por apenas 3% da população leva a cabo um desmonte ensandecido do pacto inscrito na Carta de 88 sem consultar a sociedade.
A exceção desinibida torna forçoso admitir: não haverá amanhã se a sociedade não se credenciar para resgatá-lo com as próprias mãos.
Reside aí a natureza peculiar da luta eleitoral que se avizinha.
Se a sociedade quiser escapar a um futuro de vidas ordinárias, atolado em desigualdade granítica, sob o peso de uma nação-estábulo, ordenhada por uma elite preguiçosamente colonial e predadora, será preciso ir além do horário gratuito eleitoral.
O êxito da resistência depende da firmeza desse passo.
A construção de novas instâncias de participação social e política em todas as áreas da vida nacional é o norte incontornável da caminhada que a disputa eleitoral enseja e a hora cobra.
As razões desse imperativo pulsam à flor da pele.
A inexistência do arcabouço de mobilização e autodefesa explica em grande parte a marcha batida do retrocesso que há um ano e meio golpeia todas as dimensões da vida social, inclusive os valores da tolerância, da solidariedade e da liberdade cultural.
A cavalgada obscurantista reitera, ademais, a lição tantas vezes alertada pelos movimentos sociais: nenhum projeto transformador subsistirá no Brasil enquanto persistir o poder do monopólio conservador de deformar o discernimento da sociedade com a emissão diuturna de um único ponto de vista.
E não é só a emissão que pede mais democracia.
A escuta forte da sociedade –através de referendos, consultas e plebiscitos mais frequentes -- é outro requisito à evolução de políticas, leis e normas que vão interferir no padrão de vida e nos valores de toda a população.
A finalidade última desse aggiornamento participativo não poderá ocupar menos que o eixo central da luta em 2018 e além dela.
Trata-se, mais que nunca, de acumular as forças necessárias –organizativas e ideológicas-- para arrancar das mãos das elites locais e estrangeiras o controle leonino sobre as instituições e ferramentas que ordenam o rumo, o financiamento e a repartição da riqueza nacional.
Esse é o cerne da unificação da luta progressista capaz de aglutinar democratas, nacionalistas, socialistas, comunistas e libertários de todos os matizes.
As consequências palpáveis do saque promovido pela coalizão golpista em múltiplas frentes –do pre-sal à legislação trabalhista, incluindo-se a PEC do Teto e o desmonte do BNDES — emprestam apelo popular à queda de braço que vai definir o século XXI brasileiro.
Não há retórica nisso.
O plano golpista é reduzir em 30% o tamanho do Estado em duas décadas.
A urna de 2018 é encarada pelas elites como o segundo round decisivo da rapina abutre iniciada em 2016.
Até o afinado Financial Times se espanta com a abrangência da desnacionalização em curso no Brasil:’ 'Suddenly everinthing is for sale, from ports and highways to airports and railways’, constata o jornal inglês em manchete garrafal de uma página, na segunda-feira, 13/11/2017.
Igual espanto convoca a razia em outras frentes.
A PEC do Teto encolherá a participação relativa da saúde, da educação, das aposentadorias e outros benefícios no crescimento efetivo de receita em anos vindouros.
A desregulação do mercado de trabalho associada ao desemprego épico de 13 milhões de pessoas condena a imensa maioria das famílias assalariadas a um horizonte de privação e empobrecimento num país em que os 10% mais ricos detém 55% da renda e os 55% mais pobres com apenas 12% dela.
O elástico da regressão não cessa de esticar como mostram os números da inadimplência, que atingiu 61 milhões de pessoas em outubro (Serasa).
Apesar da propalada ‘recuperação’, a renda da classe média levará seis anos para voltar ao patamar de 2014 e o rendimento da classe C ficará abaixo da média nacional ao menos até 2023.
Com o investimento público tendo retrocedido aos níveis dos anos 90’ (Inst. Fiscal Independente do Senado Federal), o excedente subtraído ao bem-estar social será transferido maciçamente ao bem-estar antissocial de um segmento ínfimo da sociedade.
Beneficiará os que vivem da espoliação, amesquinhando o chão da fábrica e a diária da faxineira. Mas penalizará também a classe média.
Cada vez mais ela se ressentirá da oferta de empregos de qualidade e serviços públicos dignos, ingredientes que só a interrupção do desmanche nacional e estatal poderá restituir.
Essa é a ponte capaz de trazer uma parte desses setores para fora do golpe: um projeto crível de cidadania revalorizada pela redenção da qualidade de vida ancorada em serviços e espaços públicos que devolvam o sentido de pertencimento à existência coletiva.
É justamente essa plataforma de democracia social que tem arrebatado classe media e periferias na Inglaterra, como mostra a ascensão do líder trabalhista Jeremy Corbyn, e acaba de dar a reeleição ao democrata de esquerda em Nova Iorque, Bill de Blasio, com 60% dos votos.
Serviços públicos sob o comando do Estado para criar a verdadeira cidadania do século XXI, com democracia e direitos essenciais compartilhados por todos.
A panaceia neoliberal não tem alternativa a isso.
A fé nos poderes extraterrenos dos mercados desregulado não vai retirar a nação do pântano do baixo crescimento num mundo em que as tripas do capitalismo deram nó na própria gula.
Desde a crise da ordem neoliberal de 2008, os Bancos Centrais injetaram R$15 trilhões na economia para salvar os mercados.
Não existe lastro, nem demanda nos limites atuais de classe do capitalismo para reconverter esse dilúvio em investimento produtivo.
Como advertem os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, a máquina do sistema global está em contradição nos seus próprios termos.
Desembestada, partiu para um martelo agalopado sem rumo e sem rima com o mundo real.
A desordem não se transmudará em nova ordem espontaneamente.
Em que pese a chuva pesada da liquidez, sucessivos anúncios de brotos verdes não engatam os encadeamentos virtuosos previstos pelo messianismo dos livres mercados.
As consequências da estagnação secular não podem ser minimizadas.
Ela injeta dinamite social pura nas veias da tensão econômica e política das nações que lutam pelo desenvolvimento.
Sem a participação decisiva do Estado não haverá ciclo redentor de investimentos em infraestrutura capaz de gerar os empregos, a renda e a demanda para religar o motor do crescimento com maior convergência social.
A mensagem progressista nas eleições de 2018 não pode mistificar os desafios do capitalismo global em nosso tempo.
À sociedade cabe redesenhar o mercado, o papel da indústria, as bases da produtividade e o futuro do emprego em meio à automação poupadora de mão de obra, impulsionada pelo salto tecnológico da indústria 4.0.
Não o fará um golpe parlamentar ancorado em uma escória de representatividade bisonha, orientada por economistas de bancos, vocalizados por uma mídia que avalia a nação como um portfólio de extração de bônus e dividendos.
É uma corrida contra o tempo, antes que fique escuro demais...
Ela só será vencida com a arregimentação de forças conscientes do risco crepuscular vivido pelo país e da tarefa hercúlea para evita-lo.
O palanque de 2018 não pode mistificar a tarefa de vencer a coalizão do dinheiro com a treva.
Trata-se de explicitar o que não pode mais ser adiado ou mitigado: subordinar os mercado selvagens à soberania democrática da grande maioria da população.
O nome disso hoje é, insista-se, ampla organização popular de base.
Seu sobrenome: romper o isolamento e o descrédito da política e dos partidos com uma agenda ao mesmo tempo crível e arrebatadora para 2018 e além.
Nada disso ocorrerá se o campo progressista encalhar na areia movediça da autocomiseração dos seus erros, a doença da autofobia.
E aqui vale aqui retornar a Domenico Losurdo.
E através dele ao clima de prostração dos revolucionários franceses em 1818, que o filósofo italiano pinça para falar do aqui e agora da hegemonia neoliberal.
A derrocada de tudo o que fora erigido e conquistado parecia irreversível na França da Restauração conservadora.
A experiência de 1789 era ventilada como um gigantesco equívoco.
Pior: uma vergonhosa traição aos nobres ideais libertários.
A França se inebriou de sangue para vomitar delitos’.
Era o que dizia o poeta Byron, para arrematar a lápide: ‘Delitos fatais à causa da liberdade, em qualquer época e em toda a terra’.
Para sempre. Amém.
Lembra algo? O discurso das togas, talvez, em sintonia com a escória conservadora, formando o jogral afinado na execração das políticas progressistas, diuturnamente martelado nos telejornais e diários isentos?
A pergunta que Losurdo remete ao ocaso da Revolução Francesa, bem como o da Revolução Russa, guarda incômoda pertinência –mutatis mutandis-- com a encruzilhada vivida pela resistência democrática e progressista no Brasil dos nossos dias.
‘Devemos hoje tornar nosso esse desespero, limitando-nos a substituir 1789 ou 1917 por 2017?
O desafio de responder a essa pergunta com um projeto e uma prática urdidos na autocrítica, mas não na ‘autofobia de esquerda’, como alerta o marxista italiano, resume em grande parte o sentido do renascimento editorial de Carta Maior.
Nosso repto veste uma nova roupagem com o mesmo compromisso histórico: ser um espaço ecumênico do debate crítico de esquerda, a serviço da emancipação efetiva do povo brasileiro.
Contamos com a sua participação, cara leitora e leitor, como críticos, colaboradores e militantes dessa larga avenida.
Mas também como parceiros, indispensáveis, na sustentação ideológica e financeira do repto editorial aos ladrões da esperança no Brasil, na democracia, no socialismo e em nós mesmos.
Por Saul Leblon na Carta Maior