quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Discurso de austeridade agrava a crise e serve para manter privilégios

Em livro, economista inglês desvenda mitos utilizados por governos para justificar cortes que afetam os mais pobres, deixando intocada a estrutura fiscal que privilegia os ricos



Representantes do mercado e economistas liberais, a todo momento, insistem na ideia de que Estados podem quebrar se gastarem mais do que arrecadam. Dizem que as contas públicas devem ser administradas com a prudência devotada de uma dona de casa, que controla o orçamento doméstico para não deixar a dispensa vazia no final do mês. 

Em momentos de crise, advogam que o os governos devem dar o exemplo e "cortar na própria carne", de modo a contribuir para a elevação da confiança dos investidores que, animados, fariam o crescimento florescer, inevitavelmente, segundo as leis naturais do mercado. Há ainda o argumento de teor autopunitivo, que diz que, após períodos de bonança, baseados na gastança desenfreada, sempre chega o momento em que é preciso "apertar os cintos".

São esses mitos travestidos de argumento científico, como se fossem verdades matemáticas absolutas, que o economista inglês Mark Blyth dedica-se a investigar e destruir no livro Austeridade – A História de Uma Ideia Perigosa, Ed. Autonomia Literária.

Na Europa, suas críticas a esse modelo de ajuste que repassa a conta da crise financeira (que eclodiu em 2007, e atingiu o continente nos anos seguinte), para o grosso da população, enquanto os governos correm para salvar bancos "grandes demais para falir", vem ganhando adeptos, não só entre os estudiosos, mas também entre políticos mais progressistas. 

Para tratar dos impactos da obra de Blyth, e também da sua aplicabilidade para o contexto brasileiro, os economistas Pedro Rossi (Unicamp), Laura Carvalho (USP) e Luiz Gonzaga Belluzzo (Unicamp) participaram de debate nesta quinta-feira (30), em São Paulo, que também promoveu o lançamento da versão traduzida do livro. 

Laura Carvalho, que também prefaciou a obra, afirma que o discurso de austeridade, tratado como uma ferramenta matemática para equilibrar as contas públicas é, antes de mais nada, uma estratégia política.

No Brasil, as receitas de austeridade produziram consequências sociais ainda mais graves, congelamento de investimentos em áreas estratégicas como saúde e educação, explosão do desemprego. Ainda assim, o déficit público segue cavalgando, e parte da população também começa a perceber as contradições desse discurso, quando o governo Temer propõe cortes e congelamentos, mas abre os cofres com isenções a grupos privilegiados para se salvar a própria pele. 

"Esses cortes foram dramáticos, e o que a gente viu foi uma deterioração fiscal. Os déficits se tornaram cada vez maiores, apesar dos cortes cada vez maiores, o que também ocorreu nos vários países que tentaram essa estratégia. Entra-se numa estratégia que supostamente seria rápida, para corrigir um problema fiscal. Começa-se a cortar, a cortar, até cavar o fundo do poço, e as coisas vão piorando cada vez mais", diz a economista. 

Segundo ela, a austeridade acaba se convertendo em estagnação econômica, o que acaba por agravar, ainda mais, as desigualdades sociais no país. "A gente está falando de um país com o nível de desigualdade muito mais alto, com taxas de homicídio e de violência urbana comparáveis a de países em guerra, com uma oligarquia que domina o poder desde 1.500. Ou seja, estamos falando de efeitos amplificados da austeridade, que pode se transformar em caos social." 

Para o economista Pedro Rossi, o livro de Blyth, ensina que "o conceito de austeridade está fundamentado em mitos que não tem nenhuma aderência com a realidade, nem comprovação empírica". Ele também ressaltou que as ideias que contestam o discurso de autoridade vem influenciando políticos como o líder do partido trabalhista inglês Jeremy Corbyn. 

Seguindo o receituário de ajuste, a Inglaterra reduzia o número de policiais no mesmo momento em que cresciam as ameaças de ataques terroristas. "Corbyn dizia que a política de corte de gastos estava tirando a segurança das pessoas. Assim você captura uma parte da classe média que não tem predileção pelos temais mais à esquerda. Ele também afirmava que a austeridade é seletiva e prejudica sempre os mais pobres." 

Rossi, assim como Blyth, destacou que as contas dos governos não guardam qualquer relação com a administração do orçamento doméstico, e diz que, em momentos de crise, os Estados tem que, justamente, ampliar os gastos públicos, e não promover cortes. 

"Um governo não tem nada a ver com orçamento doméstico. Tem que fazer o contrário das famílias na hora da crise", já que conta ferramentas de planejamento e previsões de receitas. "Outra diferença é que, quando a família gasta, esse dinheiro não volta. Já, quando o governo gasta, esse dinheiro circula, gerando efeito multiplicador, e volta na forma de arrecadação." 

"Na hora da crise, as famílias, com razão, cortam gastos, porque têm medo do futuro. Deixa de comprar uma televisão ou ir a um restaurante, porque prefere esperar para ver o que vai acontecer. Se todo mundo deixa de ir ao restaurante, ele quebra, e vai despedir as pessoas, gerando desemprego e queda na renda. A crise atual é também uma crise de demanda. Se todo mundo para de gastar, ao mesmo tempo, quem é que tem recursos para gastar? É o governo", defende o economista.

Já Belluzzo destacou que, em linhas gerais, as concepções de Blyth resgatam os ensinamentos do célebre economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946), que teorizou que os Estado deveriam empreender investimentos públicos que equalizassem e suavizassem as oscilações do mercado, reduzindo, assim, as incertezas. "Blyth explica o óbvio. Se você tem uma situação depressiva e continua cortando, certamente a receita fiscal cai. Não é difícil entender isso."

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domingo, 10 de dezembro de 2017

Revolução e Democracia



Tenho vindo a escrever que um dos desenvolvimentos políticos mais fatais dos últimos cem anos foi a separação e até contradição entre revolução e democracia como dois paradigmas de transformação social. Tenho afirmado que esse facto é, em parte, responsável pela situação de impasse em que nos encontramos. Enquanto no início do século XX dispúnhamos de dois paradigmas de transformação social e os conflitos entre eles eram intensos, hoje, no início do século XXI, não dispomos de nenhum deles. A revolução não está na agenda política e a democracia perdeu todo o impulso reformista que tinha, estando transformada numa arma do imperialismo e tendo sido em muitos países sequestrada por antidemocratas.

Esta tensão entre revolução e democracia percorreu todo o século XIX europeu mas foi na Revolução Russa que a separação, ou mesmo incompatibilização, tomou forma política. É debatível a data precisa em que tal ocorreu, mas o mais provável é que tenha sido em Janeiro de 1918, quando Lenine ordenou a dissolução da Assembleia Constituinte onde o Partido Bolchevique não tinha maioria. A grande revolucionária Rosa Luxemburgo foi a primeira a alertar para o perigo da ruptura entre revolução e democracia. Estando na prisão, Rosa Luxemburgo escreveu em 1919 um panfleto sobre a revolução russa cujo destino foi turbulento, só muito mais tarde tendo sido publicado na íntegra. Nesse texto, Rosa Luxemburgo escreve de modo lapidar que a liberdade só para os apoiantes do governo ou só para os membros de um partido não é liberdade. 

A liberdade é sempre e exclusivamente a dos que pensam diferentemente, e acrescenta: “Com a repressão da vida política no país todo, a vida dos sovietes [o poder popular ou conselhos de operários, camponeses e soldados] definhará mais e mais. Sem eleições gerais, sem total liberdade de expressão e de reunião, sem a disputa livre entre as opiniões, a vida morre nas instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida em que a burocracia é o único elemento activo. A vida pública adormece aos poucos, e uns poucos líderes partidários, dotados de uma energia sem limites e com grande experiência, são quem governa. 

Entre eles, apenas um pequeno numero de notáveis dirige enquanto a elite da classe operária é convidada de tempos a tempos a participar em encontros para aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por unanimidade as resoluções propostas—no fundo, o trabalho de uma clique, uma ditadura, não certamente do proletariado, mas de um pequeno grupo de políticos… Estas condições causarão inevitavelmente a brutalização da vida pública: tentativas de assassinato, liquidação de reféns.” Um texto premonitório de alguém que seria, ela própria, assassinada dois anos depois.

Vivemos um tempo de possibilidades desfiguradas. A revolução seguiu uma trajectória que foi dando cada vez mais razão às previsões de Rosa Luxemburgo e foi levando a cabo uma transição que, em vez transitar para o socialismo, acabou por transitar para o capitalismo, como bem ilustra hoje o caso da China. Por sua vez, a democracia (reduzida progressivamente à democracia liberal) perdeu o impulso reformista e provou não ser capaz de se defender dos fascistas, como mostrou a eleição democrática de Adolfo Hitler. 
Aliás, o “esquecimento” da injustiça socio-económica (para além de outras, como a injustiça histórica, racial, sexual, cultural e ambiental) faz com que a maioria da população viva hoje em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas.

Se o drama político do século XX foi separar revolução e democracia, atrevo-me a pensar que o século XXI só começará politicamente no momento em que unir revolução e democracia. A tarefa pode ser assim resumida: democratizar a revolução e revolucionar a democracia. Vejamos como. Dados os limites de espaço, as orientações são formuladas em termos de princípios com escassa explicação.

Democratizar a revolução. 

Primeiro, são por vezes necessárias rupturas que quebram a ordem política existente. Esta, quando se auto-designa democrática, é certamente uma democracia de minorias para as minorias, em suma, uma falsa democracia ou uma democracia de baixíssima intensidade. A ruptura só se justifica quando não há outro recurso para pôr fim a este estado de coisas e o seu objectivo principal é o de construir uma democracia digna do nome, uma democracia de alta intensidade para as maiorias, com respeito pela acomodação das minorias. A revolução não pode correr o risco de se perverter na substituição de uma minoria por outra. 
Segundo, a ruptura, como o nome indica, rompe com uma dada ordem, mas romper não significa fazê-lo com violência física. No dia da tomada do Palácio de Inverno morreram poucas pessoas e os teatros funcionaram normalmente. Tal como na Revolução de 25 de Abril de 1974, em que morreram quatro pessoas e houve um ferido grave. 

Terceiro, os fins nunca justificam os meios. A coerência entre uns e outros não é mecânica mas devem equivaler-se nos tipos de acção e de sociabilidade política que promovem. Neste sentido, não é admissível que se sacrifiquem gerações inteiras em nome de um futuro radioso que hipoteticamente virá. 
O futuro daqueles que mais precisam da revolução são as maiorias empobrecidas excluídas, discriminadas e lançadas pela sociedade injusta em zonas de sacrifício. O seu futuro é amanhã e é amanhã que devem começar a sentir os efeitos benéficos da revolução. Terceiro, historicamente muitas revoluções foram rápidas em despolarizar as suas diferenças com os inimigos e antigas classes dominantes, ao mesmo tempo que polarizaram, por vezes de forma brutal, as suas diferenças com grupos revolucionários, cuja linha política fora derrotada. 
Chamou-se a isso sectarismo e dogmatismo. Esta perversão dominou toda a esquerda política do século XX. 
Quarto, a luta de classes é uma luta importante mas não é a única. As lutas contra as injustiças e discriminações raciais (colonialismo) e sexuais (hétero-patriarcado) são igualmente importantes, e a luta de classes nunca terá êxito se as outras também não tiverem. Vivemos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais e as três formas de dominação actuam articuladamente. Ao contrário, os homens e as mulheres que lutam contra a injustiça concentram-se, em geral, numa das lutas, negligenciando as outras. Enquanto as lutas se mantiverem separadas, nunca terão êxito significativo. Quinto, não há uma única forma de emancipação social. Há múltiplas formas e, por isso, a libertação ou é intercultural ou nunca será. 

Revolucionar a democracia. Primeiro, não há democracia, há democratização progressiva da sociedade e do estado. Segundo, não há uma única forma legítima de democracia, há várias, e o conjunto delas forma o que designo por demodiversidade. Tal como não podemos viver sem a biodiversidade, também não podemos viver sem demodiversidade. Terceiro, nos diferentes espaços-tempos da nossa vida colectiva, as tarefas de democratização têm de ser levadas a cabo de modo diferente, e os tipos de democracia serão igualmente distintos. 

Não é possível a democratização do estado sem a democratização da sociedade. Distingo seis espaços-tempo principais: família, produção, comunidade, mercado, cidadania e mundo. Em cada um destes espaços a necessidade de democratização é a mesma, mas os tipos e os exercícios de democracia são diferentes. Quarto, seguindo o pensamento político do liberalismo, as sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos reduziram a democracia ao espaço-tempo da cidadania, o espaço que designamos por político, quando todos os outros são igualmente políticos. Por isso, a democracia liberal é uma ilha democrática num arquipélago de despotismos. 

Quinto, mesmo reduzida ao espaço da cidadania, a democracia liberal, também conhecida por representativa, é frágil, porque não pode defender-se facilmente dos anti-democratas e dos fascistas. Para ser sustentável, tem de ser complementada e articulada com a democracia participativa, ou seja, com a participação organizada e apartidária de cidadãos e cidadãs na vida política muito para além do exercício do direito de voto, que obviamente é precioso; apenas não é suficiente. 

Sexto, os próprios partidos têm de se reinventar como entidades que combinam dentro de si formas de democracia participativa entre os seus militantes e simpatizantes, sobretudo na formulação dos programas dos partidos e na escolha de candidatos a cargos electivos. 

Sétimo, a democracia de alta intensidade deve distinguir entre legalidade e legitimidade, entre o primado do direito (que inclui os direitos fundamentais e os direitos humanos) e o primado da lei (direito positivado), ou seja, entre rule of law e rule by law. O primado da lei (rule by law) pode ser respeitado por ditadores, não assim o primado do direito (rule of law). 

Oitavo, hoje em dia governar democraticamente significa governar contra a corrente, já que as sociedades nacionais estão sujeitas a um duplo constitucionalismo: o constitucionalismo nacional, que garante os direitos dos cidadãos e as instituições democráticas, e o constitucionalismo global das empresas multinacionais, dos tratados de livre-comércio e do capital financeiro. Entre os dois constitucionalismos há enormes contradições, já que o constitucionalismo global não reconhece a democracia como um valor civilizacional. 
E o mais grave é que, na maioria das situações, em caso de conflito entre eles, é o constitucionalismo global que prevalece. Quem controla o poder do governo não é necessariamente quem controla o poder social e económico. É o que sucede com os governos de esquerda. Para que estes sustentem, não podem confiar exclusivamente nas instituições. Devem saber articular-se com a sociedade civil organizada e com os movimentos sociais interessados em aprofundar a democracia e dispor de meios de comunicação próprios que rivalizem com os média corporativos em geral subordinados aos ditames do constitucionalismo global.

Democratizar a revolução e revolucionar a democracia não são tarefas fáceis, mas são a única via para travar o caminho ao crescimento das forças de extrema-direita e fascistas que vão ocupando o campo democrático, aproveitando-se das debilidades estruturais da democracia liberal. A miséria da liberdade será patente quando a grande maioria da população só tiver liberdade para ser miserável.

 

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O capitalismo é compatível com a democracia?


O capitalista pode despedir um operário, mas o contrário não é possível. Por isso, o capitalismo e a democracia não são gêmeos. E talvez sejam o contrário




A estabilidade social e econômica dentro do sistema capitalista enfrenta dois problemas essenciais. Por um lado, as contínuas crises e a feroz competição intercapitalista fazem da acumulação de capital um processo inseguro. Por outro, o conflito na distribuição de renda constitui uma permanente ameaça de ruptura social. A democracia está no coração destas duas fontes de tensão sistêmicas.

Para introduzir algumas definições operativas é preciso vamos definir que consideramos democracia o sistema no qual todos os cidadãos adultos têm direito a voto (sufrágio universal), há eleições livres e são protegidos os direitos humanos a partir de um bem estabelecido Estado de direito. O capitalismo é um sistema onde uma classe dominante se apropria do excedente do produto social não através da violência e sim do mercado.

O surgimento do capitalismo se deu dentro de um contexto onde abundavam os estados monárquicos e autocráticos, para não dizer ditatoriais. A necessidade de preservar os direitos de propriedade da classe capitalista era uma das prioridades desses estados. O movimento de ideias começou a mudar quando Estados Unidos e França viveram suas revoluções. Ainda assim, a constituição dos Estados Unidos (1787) não menciona o sufrágio universal, além de outorgar a cada estado federado a faculdade de regular o direito ao voto em seu território. A maioria só outorgou esse direito aos proprietários. Somente na 15ª e na 19ª emenda (de 1870 e 1920 respectivamente) o país conseguiu o voto universal. Na França, a revolução acabou com a monarquia mas o sufrágio universal só se tornou realidade em 1946.

A palavra democracia foi utilizada até o começo do Século XX em um sentido pejorativo, ou como sinônimo de um sistema caótico no qual as classes baixas terminariam expropriando os donos do capital. A classe capitalista pensava que por trás do sufrágio universal se ocultava o perigo de que a maioria democrática pudesse abolir seus privilégios. Porém, a pressão de uma massa que não tinha direito a voto mas formava parte da economia foi se tornando irresistível, gradualmente. As perspectivas da classe capitalista também foi transformando: um regime monárquico parecia ser cada vez menos adequado para garantir o cumprimento dos contratos e os direitos de propriedade. Apesar de tudo, o capitalismo e a democracia continuaram sendo vistos como processos antagônicos até meados do Século XX.

Ao final da I Guerra Mundial, a reconstrução das economias capitalistas na Europa não permitiu que se consolidasse uma ordem social adequada para o capitalismo. Em vários países, isso abriu espaço para a consolidação do fascismo. A Grande Depressão debilitou o capital e gerou um sistema regulatório no qual uma adequada distribuição do produto se ergueu a partir deu a partir da prioridade do estado. Esse sistema permitiu o crescimento robusto e a distribuição de benefícios através do Estado de bem-estar durante as três décadas do pós-guerra. A classe capitalista aceitou a contrariada a regulação do processo econômico por parte do Estado. A legitimidade do capitalismo se fortaleceu através de uma menor desigualdade e um melhor nível de vida para a maior parte da população. Nesse período, democracia e capitalismo pareciam marchar de mãos dadas e em sincronia.

Contudo, a partir dos Anos 70, ressurge a tensão pela diminuição da rentabilidade do capital, uma queda nas taxas de crescimento, novas pressões inflacionárias e outro desajustes macroeconômicos. A política econômica que havia mantido o Estado de bem-estar foi desmantelada gradualmente, ao mesmo tempo em que se declarava guerra contra sindicatos e instituições ligadas à dinâmica do mercado de trabalho. Nesse tempo, começou também o processo de desregulação do sistema financeiro. Essa situação acabou por destruir o regime de acumulação baseado numa democracia que buscava maior igualdade, e se reiniciou um ciclo natural de crise, algo que já marcou várias vezes a história del capitalismo. O neoliberalismo é a culminação de todo este processo.

Hoje a democracia se encontra mais ameaçada, porque a via eleitoral não parece permitir mudanças nas decisões fundamentais da vida econômica. As coisas pioraram com a chegada da crises de 2008. Os mitos sobre equilíbrios macroeconômicos ajudaram a impor políticas que freiam o crescimento e intensificam a desigualdade. A austeridade fiscal e a chamada “política monetária não convencional são os exemplos más sobressalentes. Se incluímos nesse contexto a incompetência dos funcionários públicos, sua entrega aos interesses corporativos e do capitalismo financeiro, assim como o tema da corrupção, temos uma combinação realmente perigosa.

O capitalista pode despedir um operário, mas o contrário não é possível. Por isso, o capitalismo e a democracia não são irmãozinhos gêmeos. E talvez sejam o contrário, inimigos mortais. Por isso o austríaco Friedrich Hayek, um dos filósofos mais importantes do neoliberalismo, não titubeia em recomendar a abolição da democracia quando se trata de resgatar o capitalismo.

* Alejandro Nadal é economista e membro do Conselho Editorial do Sin Permiso.
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domingo, 3 de dezembro de 2017

Onde o racismo se esconde


Por muito tempo não conseguia enxergar quando estava diante de um ato racista. Até porque uma neblina me impedia de ver que era de fato negra. Mesmo sabendo que branca não era – uma confusão bem comum no Brasil do colorismo. Mas aprendi que não é só quando alguém delimita o que é ou não coisa de preto que o racismo acontece.
Tomei alguns bons baldes de água fria no meio do meu processo de entendimento como mulher negra. Com eles, veio a percepção de que o racismo sempre esteve presente na minha vida: em casa, na escola, na aula de dança ou entre amigos. Ele sempre esteve lá.

Ele é tão enraizado na estrutura da sociedade que muita gente não se dá conta de suas atitudes racistas. E muitos, assim como eu, não percebem quando estão sendo vítimas. Mesmo os mais progressistas reproduzem estereótipos e contribuem para a perpetuação do racismo, até em brincadeiras e elogios.

Demorei para entender que “ter tido a sorte” de não ter nascido com o “cabelo ruim do meu pai” não era uma vantagem. Ou que ser “elogiada” pela minha “beleza exótica” de “morena cor de jambo” não era nenhuma honra. Ou, ainda, que ter um “quadril de boa parideira” não era sorte alguma. Aliás, nada disso impediu que eu não fosse convidada para aquela festinha da escola particular de alunos brancos em que eu era bolsista, de ser vigiada pelo segurança quando entro em uma loja, ou de não ser atendida em um restaurante (sim, aconteceu).

As situações estão sempre acontecendo e se repetindo. E sim, é só porque sou preta. Neste ano, no período de uma semana, me vi em três situações onde o racismo se apresentou de forma sutil, pronto para passar despercebido, mas ele estava lá. Fiquei remoendo o sentimento de desdém e analisando o porquê de cada coisa.

No hospital
Meu falecido avô branco, que carinhosamente me chamava de pretão – para a loucura de vovó que sempre o lembrava que na verdade eu era moreninha -, precisou ser hospitalizado. Ele teve de passar por um determinado procedimento em que precisava de acompanhante. Eu, por já ter trabalhado na área da saúde e em emergência, me ofereci. Entrei na sala empurrando a cadeira de rodas e meus tios brancos ficaram aguardando no corredor. No meio do atendimento me perguntam se fazia tempo que eu era cuidadora dele, pois pela afinidade ele parecia gostar bastante de mim.

Respondi que eu era neta. O enfermeiro pediu desculpas envergonhado.

Na loja
Estava em uma loja na Zona Sul carioca dando aquela olhadinha quando uma senhora meio ríspida me questiona sobre um produto. Fui confundida com uma das funcionárias. Um clássico. Não, minha roupa não se parecia com o uniforme da loja. Não, eu não lembrava nenhuma das funcionárias do lugar (todas brancas, inclusive). Simplesmente, eu era a mais “escurinha” do local.

Essa situação já aconteceu tantas vezes que já tenho até uma resposta pronta. Em todas as vezes me senti agoniada. Só não sabia o motivo. Mas agora entendo que é pelo racismo embutido neste inocente ato de confusão. Ao que parece, existe uma regra que diz que preto em loja ou é assaltante ou é funcionário. Não podemos ter poder de compra e precisamos sempre estar na posição de quem serve.

“Você não tem cara”
Peguei um Uber na Baixada Fluminense em direção à Zona Sul. Uma distância que pode render uma longa conversa com o motorista. Digo que estou a caminho do trabalho e ele, sabemos bem o porquê, deduziu que eu era doméstica e tinha um patrão maravilhoso por me pagar um Uber – disse que atendia uma governanta que fazia o mesmo trajeto. Então, resolvo dizer que sou jornalista – queria causar climão mesmo – e eis que vem a frase: “Você não tem cara. Não parece”.

O motorista, também preto, ficou chocado com a informação. Para ele, esse tipo de profissão não é o que se espera de um preto, principalmente um preto da Baixada. Não contei para ele que esse pensamento era reflexo do racismo estrutural, mas me vi na obrigação de fazer um discurso meio motivacional dizendo que era possível sim.

Ele encerrou a corrida dizendo que eu era muito esforçada.

Há um tempo atrás, não conseguiria enxergar o que havia de errado nestes casos. Hoje, sei que acontecem porque esperam menos do preto. O entendimento do que é ser negro passa pela reconhecimento do racismo e, consequentemente, das situações em que ele ocorre. Repito que precisamos apontar toda e qualquer atitude racista. Precisamos deixar de negar o racismo.


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Créditos da foto: Getty Images