A desordem financeira global não cederá tão cedo, nem tão facilmente; o cerco pela adoção da vacina ortodoxa é cada vez mais asfixiante.
A desordem financeira global não cederá tão cedo, nem tão facilmente, avisam os solavancos recorrentes das bolsas mundiais e a volatilidade dos mercados de câmbio.
Dia sim, dia não, sirenes alertam para as intempéries de uma transição em curso: é só o começo.
Quando os EUA elevarem a taxa de juro (hoje negativa) o sacolejo pode piorar com congestionada migração de capitais ao bunker de origem. É o vaticínio do jogral que nunca desafina.
A precificação desse futuro inspira cautela mas não pode significar imobilismo.
O cerco pela adoção da vacina ortodoxa é cada vez mais asfixiante.
Entende-se por isso prevenir a fuga de capitais, e a retração dos investidores, entregando por antecipação o que eles cobram: novas altas nos juros e cortes robustos no gasto fiscal.
O conjunto precipitaria a emergência de uma economia entrevada em desemprego e recessão que se pretende evitar.
Capitais viciados na alfafa suculenta da arbitragem de juros, e na aveia fina da volatilidade das moedas, cobram rapidez na liberação de novos piquetes.
Nações estremecem; o bucho protuberante do rentismo estica e brilha: grandes bancos quadruplicaram seu lucro na Espanha no ano passado; os suicídios bateram recorde no país, com alta de 11%.
O Brasil iniciou uma ziguezagueante correção da taxa de câmbio em 2012.
A desvalorização acumulada do Real é superior a 17%.
A meta do governo é equilibrar a paridade em R$ 2,45 (bateu em R$ 2,43 nesta 3ª feira).
Busca-se superar uma valorização que esfolava a indústria e golpeava o comércio exterior do país.
O déficit de US$ 4 bi em janeiro foi fortemente pressionado pela importação de bens de consumo, cujo similar nacional foi preterido pelo diferencial do preço.
A taxa de juro brasileira já é a 3ª mais alta do mundo (superior a 4% em termos reais)
Nada disso adianta e não adiantará, assegura a emissão conservadora.
Mesmo abrigado em um lacre de reservas equivalente a 13 meses de importações, a julgar pela vontade do mercadismo, o país deveria cumprir a penitência prescrita a outras praças infinitamente mais fragilizadas.
Os paladinos do capitalismo pró-cíclico, a exemplo de Edmar Bacha, formulador tucano e assessor especial de Aécio Neves, tem a receita na ponta da língua.
A depender deles, o Brasil iniciaria desde já um tratamento feito de intermináveis doses de ajustes e arrochos recessivos, com a revogação maciça de tarifas protecionistas e alta sideral dos juros.
O país que sobrar disso poderá estacionar a carcaça no cemitério da paz salazarista que hoje abriga os metabolismos exauridos de Portugal, Espanha e assemelhados.
É o que os mercados podem fazer pelo Brasil.
E o farão, se não forem contidos.
O fatalismo do receituário conservador exprime uma tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva, elevado desemprego e especulação solta na esfera financeira (leia a análise de Michael Roberts; nesta pág; bem como a entrevista de Marcelo Justo com chefe de investigação do Conselho Europeu de Relações Exteriores, Hans Kundnani, e a nota neste blog ‘Obama: o mercado vai bem, o povo vai mal’).
Se quiser resistir ao rodo nivelador, o Brasil terá que calibrar os ajustes que precisam ser feitos –como o do câmbio e a maior ênfase no investimento-- a contrapelo dos automatismos de mercado.
Só existe uma força capaz de fazer frente a eles: a política.
A política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se impôs.
Só ela poderá reverter a brutal agonia da decadência atual.
A espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929 foi o recuo desastroso do controle da Democracia sobre o poder do Dinheiro. Seu vetor, o desmonte das travas regulatórias do sistema bancário consolidado no pós-guerra.
Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de suas referências pelos valores neoliberais, alargaram os vertedouros para o espraiamento da dominância financeira atual.
A queda do Muro de Berlim em novembro de 1989 simbolizou a supremacia de uma ordem regressiva que agora vive a sua fase crepuscular.
A sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder autorregulador dos mercados perdeu a capacidade institucional de gerar antídotos às degenerações intrínsecas a essa renúncia.
A democracia terá que se reinventar para que tal possibilidade se recoloque no horizonte da ação política.
Não é uma agenda protelatória à espera de um alvorecer redentor.
É um imperativo à negociação política do passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
Caminhar em busca desse ponto de mutação requer, ademais do discernimento do governo, a prontidão das forças sociais para trilhar o caminho.
Faz parte do trajeto um salto na compreensão das interações perversas que subordinam o emprego, o salário e a própria sobrevivência operária à corrosão industrial em marcha batida na economia.
Juros altos e cambio flutuante transformaram-se em armadilha contra a produção e o emprego.
A valorização cambial nos últimos anos beneficiou o poder de compra dos salários.
Mas o crescimento desbragado das importações vazou a demanda para a China e transferiu vagas para a Ásia.
Retificar o curso dessa sangria tem um preço.
Se o ajuste for feito via mercado, será descarregado integralmente no bolso do assalariado.
Num processo de repactuação política , ônus, bônus e prazos serão ordenados pela correlação de forças em movimento –que terão nas eleições de outubro um de seus moduladores.
Uma certeza emerge das tensões e impasses refletidos nos indicadores econômicos: o capitalismo aceita tudo.
Menos a violação do seu impulso vital imiscível, como água e óleo, com ideais de harmonia e estabilidade.
Não é a necessidade que comanda a produção. É o oposto.
É nesse percurso avesso a convergências sociais que regurgitam as bolhas constitutivas de uma crise permanente de superprodução --de capitais fictícios e não de mercadorias.
Desmontar essa usina efervescente, repita-se, não é obra técnica para os mercados.
Ela tampouco será revertida em um só país e delimita a correlação de forças em cada um deles.
Mas há mais a ser feito do que simplesmente sancionar a fatalidade ortodoxa.
O que há para ser feito é romper a caixa preta do economicismo com uma repactuação progressista do desenvolvimento brasileiro.
A premência desse mutirão político soou a sua hora e a eleição de outubro se oferece como seu catalisador no país.
A ver.
Saul Leblon, no editorial da Carta Maior
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