Há sinais claros de que uma parcela influente da sociedade brasileira está se aproximando cada vez mais dos valores totalitários específicos do fascismo.
Quem algum dia teve estômago para assistir ao maravilhoso e grotesco “Salò, 120 dias de Sodoma”, de Pasolini, encontrou lá a definição mais aguda sobre o fascismo e suas peculiaridades ante outras formas de totalitarismo. No filme, Pasolini escancara ao público uma personagem absurdamente banal e monstruosa de Mussolini, que se enclausura com sua alta cúpula de governo em uma mansão de campo, levando com ele dezenas de jovens, homens e mulheres, com as quais praticaria os mais abomináveis atos possíveis e imagináveis pela mente humana.
O que é que Salò tem que ajudaria a compreender a sociedade brasileira nos dias de hoje? Muito. Há sinais claros de que uma parcela influente da sociedade brasileira está se aproximando cada vez mais dos valores totalitários específicos do fascismo. Essa percepção não vem somente dos recentes episódios de espancamentos físicos e morais de pessoas comuns, na maioria mulheres, inclusive mães com bebês, única e exclusivamente devido à roupa vermelha utilizada em espaço ppúblico. Não, a percepção de que o Brasil está gestando o fascismo do século XXI vem do comportamento de suas instituições, ou melhor, do estado de sítio a que elas estão sendo progressivamente submetidas.
O obsoleto sistema político brasileiro adotou como estratégia de sobrevivência o abandono das principais regras de convivência democrática, em prol do objetivo inescrupuloso de retirar do poder, a qualquer custo e sem fato concreto, um presidente democraticamente eleito. A celebração dessa festa bizarra assumiu contornos alarmantes quando nenhuma repreensão, fora do campo democrático, foi vista diante do vazamento a veículos alheios ao devido processo legal de escutas ilegais da mandatária máxima à mídia encastelada na defesa de seus interesses de derrubar o governo, expondo as garantias constitucionais aos ouvidos de todos.
A democracia é uma instituição frágil, convive mal com os sentimentos dos homens; mas tende a se consolidar na sociedade se houver tempo para florescer, e o Brasil esta longe desse exemplo. Na última década, a combinação das redes sociais com o decadente sistema político fermentou novas bases de avanço do fascismo, conferindo voz pública a pessoas que restringiam suas manifestações grotescas às mesas de bar, aos cultos, às lojas e agremiações sociais e à tribuna exercida por partidos antes nanicos e exóticos. Atores políticos participaram do banquete coprofágico e utilizaram a fragilidade das instituições democráticas para golpear valores fundamentais de nossa sociedade moderna. Em poucos anos, temos em curso a redução da maioridade penal, a restrição do conceito de família, a criminalização dos movimentos sociais, o ataque a múltiplos direitos fundamentais da seguridade social, a entrega da soberania sobre os recursos naturais às grandes corporações internacionais. O fascismo do século XXI vai-se fortalecendo na desconstrução dos direitos constitucionais pactuados pela redemocratização.
Hannah Arendt ensina que a força totalitária espreita a qualquer ação política, mesmo dentro da democracia, alimentando-se de todos os campos ideológicos. O fascismo (considerando suas inúmeras variantes históricas) é a forma mais brutal desse governo, mas, para ele existir, precisa estar sempre hígido, cheiroso, impecável. O fascismo nutre-se do sentimento de pureza das pessoas de bem ao seu redor, em suas camisas negras ou verdes-amarelas, convictas de que contribuem para a ampliação da democracia, quando fazem o inverso. Atrás da montanha de vaidades construída pela “beleza” fascista é que se operam os campos de concentração na sodoma dos homens.
Nesse invólucro que protege o fascismo dele mesmo, os cidadãos do lado claro da montanha não podem saber o que acontece no lado escuro dela. Enquanto a turba ocupa as ruas exigindo candidamente o verde-amarelo do fim da corrupção (de toda a corrupção!), o fascismo corrompe o sistema democrático ao turvar as garantias individuais em nome do jogo de poder. Juízes transformam-se em justiceiros e assumem as feições sobre-humanas do fascismo. Heróis acima da lei capazes de guiar o destino dos homens comuns. O fascismo é uma epopeia peculiar, pois se mobiliza nos heróis-ninguéns, em pessoas esquecidas pelas elites sociais, culturais ou intelectuais que, repentinamente, são alçadas à condição de semi-deuses. Não é por menos que, nos períodos em que o fascismo impera como sistema, a produção artística rebaixa-se em quantidade e, principalmente, em qualidade.
A Classe Média é a referência política de qualquer sistema social moderno e capitalista. Por isso, a disputa do fascismo está dentro de seus determinantes, na qual esse avança à medida que o sistema político não encontra mais formas de equacionar democraticamente o conflito distributivo no interior do desenvolvimento socioeconômico. Diferentemente do que afirmou Mussolini ao definir a sociedade por meio de um Estado totalitário em que nada estaria abaixo dele, o fascismo na verdade representa uma ruptura radical da separação entre Estado e Indivíduo, fundindo-os numa força sem regras que limitem a existência de ambos. A engenharia social, ao mesmo tempo racista e racionalista, é a principal propaganda de atração dos descontentes e dos desesperados em meio às crises cíclicas do capitalismo.
A Classe Média brasileira é peça chave na direção do processo democrático, e, infelizmente, tem demonstrado intensa fadiga desde sua peculiar consolidação no período do Regime Militar, cujos valores republicanos foram deturpados pelo ambiente de ausência de liberdades civis e pela impensável concentração de renda e riqueza promovida pela ditadura. A meritocracia, modo de operação da legitimidade de qualquer classe média no mundo, é uma falácia no Brasil, pois não há igualdade de oportunidades em nenhum estágio de vida entre um membro do interior da Classe Média e outro de fora dela. Nos anos 2000, o convívio com os subalternos foi promovido pela tentativa de estruturação do mercado de trabalho e pelo resgate das políticas públicas.
Muitos pontos de contato foram produzindo tensões entre a Classe Média e as novas classes trabalhadoras em ascensão. Nos espaços públicos, nas universidades, nos lares, tudo parecia em disputa. A intensidade do crescimento econômico favorecia muito mais as rendas baixas que as médias-altas. Em termos geracionais, os filhos da Classe Média pós-ditadura sentem-se em desvantagem ante os filhos das classes trabalhadoras. Esta é a principal origem do ódio de classes hoje no Brasil. Mas o fascismo não vive apenas de ódio, ele precisa de algo mais: deve-se justificar na ideia de pureza dos cidadãos de bem. É preciso que este ódio vista a máscara dos símbolos da Classe Média; cujo centro é a sempre meritocracia.
Como o código de ascensão social ancorado por políticas públicas afronta simbolicamente o mito da meritocracia, a Classe Média inteira não é capaz de proteger a incorporação dos outros extratos, portanto ela se fragmenta entre uma subclasse progressista e outra profundamente reacionária. O fascismo atua diretamente sobre essa cisão, aprofundando o antagonismo entre as frentes de posicionamento e fragilizando a defesa histórica que a Classe média deveria ter para com a democracia. A promessa do fascismo é de um caminho mais curto de retrocessos sociais, amplificando o desespero social em medidas que ignoram as regras do jogo democrático. O objetivo último, a volta dos novos atores a seus lugares do passado, é o que importa.
Amparado pela propaganda cotidiana dos monopólios midiáticos, a fração racionária da Classe Média acredita, como um fetiche, ser a real portadora da mudança moral do país. Isso é o mecanismo mais profundo de florescimento do fascismo: a transferência para o outro de todo o lado sombrio da montanha. Reproduza isso a um partido político, que em segundos a onda fascista atinge as instituições, acovardando-as ante os heróis-ninguéns criados no processo histórico. O fascismo do século XXI representa este atalho no retrocesso social, e a Classe Média pode-se transformar em sua vanguarda contrarrevolucionária.
André Calixtre na Carta Maior
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