sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O que é, como e para que ser de esquerda (I)



O que vou escrever visa complementar o que nosso companheiro Emir Sader expôs no seu blog, nesta página, sobre o que é ser de esquerda.

É uma questão complexa, que metodologicamente dividi em três capítulos: (I) O que é ser de esquerda, o que envolve questões conceituais; (II) como ser de esquerda, o que implica considerações sobre tática e estratégia; (III) para que ser de esquerda, o que sugere a discussão sobre meios, fins, e contra-fins, isto é, aquilo que é necessário rejeitar para ser de esquerda.

Comecemos pelo começo, isto é, as questões conceituais.

A primeira coisa a fazer para ser de esquerda é, portanto, postular que existe uma esquerda. A ideia pode parecer tautológica, mas não é. Porque é isto que está em questão. Para existir uma esquerda, é necessário que exista uma direita. E a direita se auto-nega sistematicamente: se aquela é a questão, este é o nó da questão: a esquerda tem diante de si um inimigo que elude (ilude) constantemente sua existência.

Para a direita, negar a existência da esquerda é uma afirmação tática para encobrir, acobertar, a sua própria existência. Estaremos diante da tática do lobo na pele do cordeiro? Em parte. Porque em parte não se trata disto, mas se trata de uma questão ontológica: como a direita não quer mais se apresentar como um partido, ou uma seção (secção também) da sociedade, só lhe resta se apresentar como abarcando o significado – os signifcantes (mídia) de toda a sociedade. Ou seja, estamos diante do paradoxo de que, para afirmar ou manter ou defender a sua pretensão à hegemonia na praxis e do pensamento, temos uma corrente social que deve negar sua existência e apresentar-se como aquilo que ela não é: a expressão de valores universais.

A esquerda precisa, portanto, concentrar-se na sua própria maneira de ser, e de se apresentar, diante e depois das crises por que passou, com a derrota ou o fracasso dos regimes que eram ou se apresentavam como seus. O primeiro passo para ser de esquerda, portanto, é refluir sobre seus próprios passos, e pensar o que aconteceu, para que os erros, os equívocos, as fantasmagorias do passado não voltem a cegar a visão do horizonte. Isto não garante que não venham a sobrevir novos erros, equívocos, novas fantasmagorias, Trata-se apenas de pensar que não sejam os mesmos.

Então vamos ao principal deles. Postulando que haja uma esquerda, é necessário logo a seguir negar esta tese, ou melhor, realocar o peso das palavras. Trata-se de afirmar que existe uma esquerda, onde esta palavra é um substantivo e aquela um artigo indefinido. Não se trata de afirmar que exista uma esquerda, onde aquela palavra é um numeral e esta um mero adjetivo da unidade. Ou seja, postular que há uma esquerda significa postular que existem esquerdas, que ela é plural, e que nenhuma das correntes que nela convivem é a dona da verdade absoluta e que, portanto, nada justifica que umas e outras andem enfiando as próprias picaretas nas cabeças de outras e umas, até porque isto significa facilitar a ascensão dos picaretas em seu próprio seio.

Em termos de metodologia e conceituação, isto significa trocar o debate em que muitas vezes a esquerda se envolveu sobre se a democracia é uma valor universal ou não, por outra formulação. O debate sobre democracia como valor universal se prendeu, em geral, à ideia da afirmação/negação de um tipo de democracia – a representativa de inspiração liberal – como sendo a democracia por excelência.

A prática não é bem assim, está demonstrado. Existe a democracia participativa – de que os orçamentos que levam este nome são um exemplo recente – e existe também a democracia direta, a das ruas, das praças, das manifestações, que tem seu espaço e seu próprio protocolo, complicado às vezes por irrupções de violência – seja da repressão ou dos que querem se valer da oportunidade para promover quebra-quebras pseudamente anarquistas.

A questão é a de se buscar a construção da democracia como um valor permanente, isto é, a ser buscado em cada instância de um movimento e do conjunto dos movimentos da sociedade. Vamos reconhecer: não pensávamos assim, na maioria, décadas atrás. Para muitos a democracia e suas formalidades – fosse na aura representativa, na esfera participativa ou na linearidade das praças e ruas ocupadas – eram apenas passos táticos até que se atingisse o estágio da ditadura do proletariado, confundida com a ditadura das vanguardas do proletariado, concepção que facilitou o caminho para a emergência da ditadura das burocracias, que já nada tinham a ver com o proletariado.

É claro que há situações-limite e mesmo fora de qualquer limite. Não dá para comparar a situação de uma lua na clandestinidade, por exemplo, com esta que vivemos hoje em que há um respeito, mesmo que limitado, por princípios eleitorais, de representatividade, de participação e até mesmo de ação direta, com todas as ressalvas que haja. Dentro do reconhecimento das diferenças, o que importa, para uma práxis de esquerda, é a afirmação do direito à diferença. A começar, portanto, por suas diferenças.

É difícil? É.

Mas não é impossível. A prática o tem demonstrado. Voltaremos ao assunto, na semana que vem.

A reflexão é do Flávio Aguiar, colunista da Carta Maior

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