sábado, 8 de agosto de 2015

Dirceu deveria ser deixado em paz




Aos intelectuais, jornalistas e celebridades acadêmicas que têm se dedicado, nos últimos dias, a manifestar a decepção repentina com José Dirceu depois que ele foi conduzido a prisão da Polícia Federal em Curitiba, gostaria de dizer, do alto de minha modéstia, que sinto vergonha por esse comportamento.

Falando dos argumentos de conveniência, antes de chegar às teses de consciência. A experiência recomenda que se evite bater em quem está por baixo, depois de muita badalação no tempo em que se encontrava por cima. Não é só política. É pudor – que ajuda a preservar a própria memória.

Até pela biografia, como um dos líderes da resistência à ditadura, que organizou grandes protestos estudantis, articulou a luta pela anistia e as diretas-já, Dirceu tem credibilidade para ser ouvido, para se explicar e para se defender, se for o caso.

Queira-se ou não, é parte da história da nossa democracia. Se hoje podemos usufruir direitos e liberdades, isso se deve a pessoas que tiveram atitudes definidas e claras, no momento correto. Dirceu foi uma delas.

É claro que o passado não garante anistia prévia a ninguém. Mas ajuda a pensar.

Pensei que já tínhamos vivido – nós, que perdemos em 64, fomos derrotados de novo em dezembro de 68, que enfrentamos muitos momentos cruéis e assustadores – tempo suficiente para ter aprendido de uma vez por todas algumas lições essenciais. Por exemplo:

-- Que não se pode transigir com valores e garantias democráticas;

-- Que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário, o que só é possível com um amplo direito de defesa e o processo contraditório;

-- Que o casamento entre meios de comunicação (“Basta!” “Fora!”, quem pode esquecer dessas manchetes?) e os tribunais costuma produzir situações degradantes, como lembram as velhas Comissões Gerais de Investigação do pós-64;

Vivemos um período tão especial – não tão raro assim em nossa história, vamos admitir -- em que as pessoas não são presas porque foram julgadas ou condenadas. Elas são presas para confessar e delatar, o que os responsáveis da Lava Jato costumam negar mas a matemática trabalha contra seu argumento: das 18 delações do caso, só uma foi feita com o acusado em liberdade. Um procurador, Mauro Pastana, autor de pareceres favoráveis à Lava Jato, admitiu com todas as letras que as prisões preventivas podem estimular os acusados a “colaborar.”

Isso permite entender que a Operação não segue a lógica das investigações criminais, que tem um crime a investigar, um responsável a julgar e punir, se for caso. Mas temos uma lógica de guerra, onde o alvo é visto como inimigo.

Onde nossos intelectuais resolveram esconder Norberto Bobbio, pai da unidade entre justiça e da democracia, que ajudou a afastar a esquerda do totalitarismo da era stalinista? Não foi ele, citação obrigatória dos anos 1980 e 1990, que ajudou a explicar que a democracia era um valor universal, para nós e para eles – sejam quem forem o “nós” e o “eles”?

Será que todos se esqueceram de Emile Zola, forçado a exilar-se em Londres para ficar longe dos fanáticos do ódio manipulado pela imprensa reacionária da França do final do século XIX?

Dirceu tem inúmeros defeitos mas não é por causa deles que se tornou um alvo político do conservadorismo brasileiro, que só deixou de persegui-lo com ataques brutais no período em que se tornou importante demais para ser alvejado sem receio de retaliação.

Entre os diversos políticos brasileiros, Dirceu cometeu erros inúmeros, exibe defeitos imensos, mas é um dos poucos que, em sua estatura, não foi cooptado. Conservou uma visão própria do mundo e das coisas da política – e isso incomoda demais. Por isso não basta que seja derrotado. Deve ser esmagado. Repetindo a sentença do tribunal de uma rainha louca contra um revolucionário que não vou citar aqui para não inspirar comparações indevidas, seu corpo deve ser esquartejado e a terra, salgada. Não é de envergonhar?

Copiamos o absolutismo português, por outros meios.

A última derrota de Dirceu foi ter negado o pedido de acesso integral às denúncias feitas contra ele. O argumento é que isso poderia atrapalhar o curso das investigações. É um direito básico, que faz parte da construção da democracia e da invenção dos direitos humanos, ocorrida naquele período em que homens e mulheres deixaram de ir a praça pública aplaudir esquartejamentos, torturas e mortes na forca.

Hoje se prende sem condenação. Houve uma época em que se prendia sem acusação.

Evoluímos. Mas também regredimos.

Que o juiz Sérgio Moro tenha argumentos para impor essa situação e até convença os tribunais superiores de seus motivos, como ocorreu com o ministro do STF Teori Zavaski, eu até compreendo – embora me reserve o direito de considerar um absurdo.

Quando intelectuais se submetem a esse meio conhecimento, a essa verdade censurada, e mesmo assim se dispõe a condenar, assumem uma condição inaceitável: em vez de viver das próprias ideias, permitem-se pensar com o cérebro dos outros?

É desse modo que passamos a torcer pelo fim da divisão entre trabalho manual e intelectual?

Não, meus amigos. A realidade é ainda mais feia. O universo político está em mudança e não faltam mentes de olho nas vagas disponíveis na nova ordem. Aquelas que, a partir de 2003, cortejavam a ordem da qual Dirceu fazia parte.

Minha opinião é que Dirceu deveria ser deixado em paz. Quase septuagenário, com contas a apresentar aos brasileiros, e explicações a dar. Tem um ajuste de contas a fazer com sua própria história.

Dirceu perdeu os direitos políticos em 2005, no início da AP 470. O relator que conduziu a cassação de seu mandato acaba de ser acusado de receber R$ 150 000 para abafar uma das diversas CPIs da Petrobras – coisa que ele desmente, como Dirceu sempre desmentiu o que se disse sobre ele.

Como tantos antes e depois dele, no Brasil e no mundo, Dirceu passou a oferecer serviços que políticos, advogados e ministros das altas esferas possuem de melhor: contatos, conhecimentos, ideias que encurtam distâncias e vencem dificuldades. Não vou julgar essa opção aqui e agora. Cidadãos que fazem isso, em geral, devem renunciar à atividade política.

Na pátria dos lobistas registrados, o próprio Barack Obama foi obrigado a desconvidar um senador democrata, competente e articulado, Tom Dashle, que, fora do Congresso, passou a trabalhar para um escritório de empresas de saúde.

A denúncia que levou Dirceu à cadeia é que sua atividade é uma farsa e que ele só estava armando esquemas de corrupção e enriquecimento. Cabe investigar, apurar, acusar e esclarecer. Os fatos concretos são necessários para saber quem está mentindo.

De preferência, em liberdade.

Qualquer pessoa que já foi obrigada a dar explicações para representantes da Lei e da Ordem – estou falando daqueles que têm gravata – sabe a diferença. É isso que separa a civilização da barbárie.

Apesar de tudo, um advogado que esteve com Dirceu trouxe boas notícias sobre o prisoneiro: "o humor dele está melhor do que o meu."

Por Paulo Moreira Leite no Brasil 247

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