Ataques ao governo Lula fazem parte da paisagem jornalística brasileira. Tornaram-se previsíveis como os acidentes geográficos; irremediáveis como o dia e a noite. Naturalizaram-se, a tal ponto que já se lê os jornais pulando essas ocorrências, como os olhos ignoram trechos vulgares de caminhos rotineiros. O que mais espanta, porém – e a cobertura da viagem do São Francisco reforça esse desconcerto - não é a crítica , mas o tom desrespeitoso desse jornalismo. Com a aproximação das eleições de 2010, ansiedade pelo fracasso recrudesceu. A tal ponto ela se tornou caricatural que já aparecem os primeiros sintomas de saturação. O artigo é de Saul Leblon
Ponto de Saturação
por Saul Leblon, em Carta Maior
“Alojamento de Lula tem risoto, uísque e roda de viola até a madrugada.” Sob esse título auto-explicativo, a Folha [edição de 16-10] resumiu em uma retranca o espírito da cobertura oferecida aos seus leitores durante a viagem de três dias feita pelo Presidente Lula às obras de interligação de bacias do rio São Francisco, uma das mais importantes do seu governo.
O propósito de diminuir e tratar o assunto com escárnio e frivolidade se reafirmou em legendas de primeira página ao longo da visita. No dia 15-10, o jornal carimbava uma foto de Lula e da ministra Dilma Rousseff pescando no São Francisco, em Buritizeiro (MG), com a chamada: 'Conversa de Pescadores' . A associação entre a legenda e o discurso da oposição, para quem as obras são fictícias e a viagem, eleitoreira, sintetiza o engajamento de um jornalismo que já não se preocupa mais em simular isenção.
No dia 17, de novo na primeira página , o jornal estampa a foto do Presidente atravessando o concreto ainda fresco sobre a legenda colegial: ‘A ponte do rio que caiu’. A imagem de Lula equilibrando-se em tábuas improvisadas inoculava no leitor a versão martelada em toda a cobertura: trata-se de uma construção improvisada, feita a toque de caixa, com objetivo apenas eleitoreiro. É enfadonho dizê-lo, mas o próprio jornal se contradiz ao entrevistar Dom Luis Cappio, o bispo de Barra (BA), um crítico ferrenho da obra. Segundo afirmou o religioso ao jornal, ‘as obras avançam como um tsunami’. Sua crítica recai no que afirma ser a ‘marolinha’ das medidas - indispensáveis - de recuperação ambiental do rio. Diga-se a favor do governo que estas, naturalmente, serão de implementação mais lenta, na verdade talvez exijam um programa permanente.
Como o próprio bispo de Barra esclarece, não se trata apenas de promover o saneamento de esgotos e dejetos nas cidades ribeirinhas, como já vem sendo feito, ineditamente, talvez, na história dos rios brasileiros de abrangência interestadual. O resgate efeitvo do São Francisco passa também pela recuperação das matas ciliares, prevista nas obras, mas remete igualmente à recuperação de toda a ecologia à montante e para além dos beiradões, inclusive as veredas distantes onde estão nascentes, olhos d’água, lagoas de reprodução destruídos pela rapinagem madereira e carvoeira. Só quem acredita em milagres pode exigir, como faz Dom Cáppio, que um único governo reverta essa espiral de cinco séculos de omissão pública da parte, inclusive, daqueles que demagogicamente criticam as obras hoje como ‘uma ameaça ao velho Chico’.
O único acesso que a família Frias ofereceu aos leitores para que pudessem avaliar a verdadeira dimensão da obra ficou escondido na página interna da edição do dia 17, na belíssima foto que ilustra a página 12. Ali, um Lula solitário caminha por um gigantesco canal de concreto que rompe o horizonte até lamber o céu sertanejo. Há um simbolismo incontornável na imagem de um Presidente que se despede diluindo-se em uma obra gigantesca. Ela consagra seu retorno à terra de onde partiu como retirante e para onde voltou, Presidente, levando água a quem não tem - compromissos mantidos, apesar de tudo.
A solenidade da foto contrasta com o tom de adolescência abusada da cobertura, o que impediria o jornal de utilizar a imagem na primeira página, embora do ponto de vista estético e jornalístico ela fosse muito superior à escolhida. Tanto que o editor da página 12 não se conteve e abriu cinco colunas para a fotografia.
Ataques ao governo Lula fazem parte da paisagem jornalística brasileira. Tornaram-se previsíveis como os acidentes geográficos; irremediáveis como o dia e a noite. Naturalizaram-se, a tal ponto que já se lê os jornais pulando essas ocorrências, como os olhos ignoram trechos vulgares de caminhos rotineiros.
O que mais espanta, porém – e a cobertura da viagem do São Francisco reforça esse desconcerto - não é a crítica , mas o tom desrespeitoso desse jornalismo. Nesse aspecto não houve rigorosamente qualquer evolução após seis anos em que todos os preconceitos contra Lula foram desmoralizados na prática. A retomada do crescimento com inflação baixa e maior equidade social, por exemplo, distingue seu governo positivamente da paz salazarista imposta pela ortodoxia tucana no segundo mandato de FHC. A popularidade internacional do chefe de Estado brasileiro constitui outro fato sem precedente, só suplantado, talvez, pela velocidade da recuperação da nossa economia em meio à maior crise do capitalismo desde 1930. Tudo desautoriza as previsões catastróficas das viúvas provincianas do tucano poliglota.
Mas se a realidade desmentiu o preconceito, em nenhum momento a mídia conservadora deu trégua a um indisfarçável desejo de vingança que pudesse comprovar a pertinência de uma rejeição de classe ao governo Lula . Com a aproximação das eleições de 2010, a ansiedade pelo fracasso recrudesceu. A tal ponto ela se tornou caricatural que já aparecem os primeiros sintomas de saturação.
Em artigo publicado no Estadão [19-10] o físico José Goldemberg, por exemplo, um quadro de extração tucana, saiu em defesa da construção de hidrelétricas pelo governo Lula, objeto de críticas estridentes de um jornalismo que prefere esquecer a origem do apagão em 2001/2002. Na área da saúde, o respeitado cardiologista Adib Jatene, que já foi secretário de Paulo Maluf mas supera qualquer viés político pela inegável competência científica e discernimento público, tem vindo a campo com freqüência defender a necessidade de um novo imposto, capaz de mitigar o estrago causado à saúde pública pela revogação da CPF. Mais uma ‘obra coletiva’ assinada pela mídia e a coalizão demotucana.
O economista Luiz Carlos Bresser Pereira, do staff serrista, foi outro a manifestar seu desagrado com o estado das coisas. Bresser, que já defendeu abertamente o projeto de Lula para o pré-sal, rechaçou a demonização do MST articulada pela mídia e ruralistas, por conta da derrubada de laranjeiras em terras públicas ocupadas pela Cutrale [artigo na Folha 19-10]. Pode ser apenas miragem do horário de verão, mas o que essas manifestações parecem indicar é uma rebelião da inteligência –ainda que avessa ao PT - contra a a idiotização da agenda nacional promovida pelo jornalismo demotucano.
A patogenia infelizmente não é privilégio brasileiro. Na Argentina, o cerco da grande imprensa ao governo Cristina Kirchner recorre a expedientes idênticos de mentiras, fogo e fel . Com Morales, na Bolívia, não tem sido diferente. Na Venezuela, há tempos, o aparato midiático tornou-se paradigma de um engajamento que atravessou o Rubicão do golpismo impresso para se incorporar fisicamente à quartelada que quase derrubou Chávez em 2002 . Enganam-se os que enxergam aí também a evidência de uma fragilidade congênita à democracia latinoamericana. Acima do Equador as coisas não vão melhores. O democrata Barack Obama é vítima de um cerco raivoso e racista de jornais e redes, como é o caso da Fox, do direitista Rupert Murdoch que detém também o Wall Street Journal.
Quer ler o final deste artigo? Tem de ir à Carta Maior.
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