domingo, 27 de janeiro de 2013

Era uma vez uma cidade encantada chamada Santa Maria.

De acordo com relatos de servidores do IGP, muitos telefones dos mortos no ginásio tocam sem parar“.
Zero Hora, 27/01/2013.
 
Era uma vez uma cidade encantada chamada santa maria.
 
Para lá acorriam, anualmente, milhares de estudantes de todo o brasil e, principalmente, de santa maria e da região: santiaguenses, são-sepeenses, são-borjenses, cruz-altenses, caçapavanos…
santa maria sempre recebia a todos de braços abertos, com um sorriso escancarado na boca do monte.
 
Choros e abraços marcavam as despedidas de todos que nela buscavam seus sonhos; aos domingos, as rodoviárias da região ficavam pequenas para tantos carinhos e saudades.
 
Tudo começava já durante o ensino médio. pais que geralmente haviam trilhado o mesmo caminho encaminhavam seus filhos para os colégios locais; o santa maria, o centenário, o maria rocha, o maneco…
Um outro tanto concluía o ensino médio em sua cidade natal e para lá rumava à procura de um cursinho pré-vestibular; matemática com o ivo, física com o gérson, química com o enelvo… master, riachuelo e constantino.
 
Outros, ainda, ingressavam diretamente na ufsm, sem passagem por seus colégios ou cursinhos.
morávamos em repúblicas dividindo aluguel, comida, amizades e medos, esses nunca admitidos, que adolescentes, infelizmente, não têm medos.
 
Ía-se na winners, no expresso 362 e na luna luna; um pouco antes, na maison rouge. ouvia-se o trem pagador no panaceia; havia o palace in party, no hotel itaimbé, e o reveillon da rbs; as festas de formatura dos colégios, no avenida tênis clube e no clube recreativo dores, eram tão concorridas quantos as das faculdades.
 
O melhor xis era da padaria pimpão. todos juntavam grana para, ao menos uma vez por mês, tirar a barriga da miséria no espeto-corrido do bovinu’s, embora os buffets livres dos clubes comercial e caixeiral não nos deixassem na mão. o augustu’s era coisa de quem tinha pai rico. bebia-se no pingo e dançava-se legião urbana no DCE. bebia-se cirilinha. Éramos servidos no RU por tios e tias amistosos que sempre atendiam nossos pedidos de “mais um pouquinho, tia”, ou “eu quero aquela sobrecoxa, tio”.
 
As meninas da odonto, da fisioterapia e da farmácia eram tão lindas… o pessoal do direito e da medicina era tão sério…
aos sábados pela manhã o calçadão, vale o chavão, fervia de vida.
 
Vida que se foi, hoje, aos 27 dias deste janeiro de 2013.
Porque essa santa maria também morreu, hoje.
 
Vítima de nosso – de todos nós – descaso histórico com aquelas pequenas coisinhas que deixamos para depois, que achamos que não vão dar em nada. esse maldito misto de despreparo de autoridades, irresponsabilidade privada e incompetência pública, que também responde pelo nome de “jeitinho brasileiro” e que, não poucas vezes, conta como nossa conivência…
e agora, que jeitinho daremos?
 
É certo que para uma tragédia contribuem uma série de fatores, descuidos, acasos, descasos e negligências. só não vamos cair nos lugares-comuns ditados pelos especialistas de plantão; os que têm solução para tudo e não perdem tempo quando acusam, embora, muitas vezes, sequer tenham feito sua parte…
que, como sociedade racional, façamos algo que seja digno da memória dessas crianças.
 
Conheço poucas pessoas que não estejam, de algum modo, ligadas à tragédia de hoje; são santa-marienses meus familiares e amigos, ex-colegas de cursinho e de ufsm, conterrâneos, parentes, filhos e irmãos de meus amigos que hoje lá moram, trabalham e estudam, amigos de minha filha, meus ex-colegas de filosofia que hoje lá lecionam…
 
Eu não consigo sequer imaginar a dor de celulares que tocam sem parar, a dor dos familiares das 231 jovens vítimas de hoje; quando penso no desespero dessas crianças que não sonham mais meu coração se parte. lembro que em santa maria fui feliz, mas nunca mais terei essa lembrança sem me sentir um pouco egoísta pela felicidade que, a partir dessa tragédia, centenas de pessoas jamais sentirão.
 
“tanta vida diferente, tanta gente vem e vai, incerteza de quem entra, mas saudade de quem sai”, canta beto pires em “santa maria.
 
É assim que eu espero que santa maria renasça, fortalecida, dessa tragédia. que seus fihos que tão bem me acolheram continuem recebendo tanta vida diferente, tanta gente que vem e vai…
que as incertezas de quem entra, que um dia foram minhas e de meus amigos, tantos queridos amigos hoje machucados, dissipem-se e fiquem, somente, as saudades de quem sai.
 
Porque santa maria é assim, generosa.
 
* Texto originalmente extraído do Blog La Vieja Bruja

3 comentários:

  1. Não consigo encontar tradução melhor! Parabéns pelo teu texto.

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  2. República Cromagnon boate em Buenos Aires tambem queimou e levou consigo mais de 170 vidas, resultado: Pedido cancelamento do mandato do prefeito de Buenos Aires, deferido, pois não houve uma fiscalização efetiva; Proprietário da República Cromagnon condenado a 20 anos de prisão, recorreu e foi condenado a 10 anos e 9 meses e está preso!, como ficará em Santa Maria com mais de 200 vidas ceifadas?
    Ainda bem que não tive nenhum familiar atingido, pois se tivesse não sei o que faria....

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  3. Só pra esclarecer! O texto é do Marcelo Duarte, pescado ontem no La Vieja Bruja. Saludos a todos e gracias pelo acesso e leitura.

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