quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

No Brasil, algum dia deixaram a esquerda acertar?

Penso não ser razoável focar a discussão em onde a esquerda errou. O erro da esquerda foi imaginar que o acordo de elites se daria por vencido



Por onde passo, perguntam em qual setor trabalho. Respondo agricultura e ouço: “Ah, pra você tá bom. É a única coisa que hoje vai bem no Brasil”.

É verdade. Se melhorar piora. Mas a soja e o milho safrinha serão comercializados em mercado mais ofertado, portanto, a preços mais baixos. Nada a ponto de quebrar ninguém, a não ser os que fazem disso lucro. E o resto? Bem, feijão, arroz, hortaliças, legumes e frutas estarão na gangorra de sempre para virar notícia no Jornal Nacional.

Isso me desobriga da visão assim do alto e me impõe a lupa, não do agronegócio, mas do povo brasileiro em suas agruras. Vamos lá. Tenho escrito seguidamente nesta CartaCapital e em meu blog no GGN sobre os impasses da transição do capitalismo para um futuro ainda incerto. Depois de três décadas em que se travestiu de globalização com sucesso, saiu da esfera da produção, mercantil e de serviços, e impôs o foco nos ganhos financeiros. Começa a mostrar claros sinais de esgotamento.

Eric Hobsbawan logo flagrou isso. Outros cientistas sociais e economistas também. Mas ninguém teve coragem de anunciar o debacle próximo ou exercer práxis para abortar a crise. Deu no que deu. O planeta atinge o seu 10º ano de falta de vigor.

O rentismo na economia capitalista está aniquilando investimentos públicos e privados, ampliando o protecionismo no comércio internacional, concentrando a acumulação financeira e patrimonial, o que faz desaguar em queda de empregos, renda e demanda interna nos países pobres e emergentes, e refúgio para vida melhor nos países ricos.

Ou não? Se assim não acham, devem estar lendo apenas os artigos de Samuel Pessôa e outros renitentes neoliberais, que privilegiam mais seus os interesses patronais em troca dos gordos salários que recebem nas casas bancárias. Ah, agora, temos André Resende em momento ambiental-revisionista. Provável amor à fauna equina francesa.

Nesta semana, em evento promocional da CartaCapital, encarando projeto diante da irreversibilidade digital, ouvi Ciro Gomes e a economista Leda Paulani. De ambos, percebi argumentos irretorquíveis.

Pude, inclusive, entender a dialética dos que apoiaram a gestão do PT, Lula e Dilma, entre 2003 e 2016. Seria repetitivo narrar erros e acertos. Existiram, uns para o muito bem outros para o menos mal. O que estamos, hoje em dia, presenciando acontecer na política, na economia e no social do País é um arraso evidente. O silêncio em folhas e telas cotidianas é constrangedor.

Ouso dizer que a eles nada mais importa, nunca importou. Só valia defenestrar do poder um governo legitimamente eleito, que deixava levar nas águas da Operação Lava Jato, sem interferência. Agora, seu estado é terminal.

Aliás, se no século 17 a cafeicultura brasileira já fazia cagadas homéricas, por que não continuaríamos a fazê-las com as economia e sociedade brasileiras ad aeternum?

No debate de CartaCapital, Ciro Gomes citou ver fissuras (ele?) a permitir que retomássemos o caminho de uma democracia social. Remeteu-me ao filme “2001, Uma Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick, 1968). Eles, o monólito preto; nós, os macacos. 

Penso não ser razoável focar a discussão em onde a esquerda errou. No Brasil, algum dia deixaram-na acertar? Em que ciclo tivemos um sistema distributivo para valer? Os poucos momentos de benesses sociais, quando não logo abortados, passaram a ser fustigados pela elite econômica como “fora de moda”, “passadista” ou comparados aos de países hegemônicos ou com histórico de milênios. O único e recorrente equívoco da esquerda foi imaginar que o acordo secular de elites se daria por vencido.

A vergonha Temer como presidente é exclusiva de elites e seus simulacros desavergonhados. Dizer que o povo brasileiro não soube reagir é desprezar as mazelas que aqui vivem as classes subalternas. Pedir-lhes mais? Combate? Resistência? Ora, bolas.

Frase bem lembrada pelo jornalista Jânio de Freitas, na coluna de 12/02, na Folha de S.Paulo: “Não há panelaços e bonecos infláveis para os acusados do governo Temer”.

Sabem por quê? Na hora em que eles sentam no vaso para o cocô diário, olham para o produto e pensam: “olha aí o meu mérito; com certeza muito mais bem feito do que o do Severino de Maria, que me serve o cafezinho”.

São genialidades ancestrais. Seus pais, como anotou Pierre Bourdieu, os colocaram nas melhores instituições educacionais, o governo pagou-lhes as universidades públicas, o círculo social indicou-lhes os melhores empregos. Como não produzir o melhor cocô? 




segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Como as empresas do amigo de Teori foram condenadas por golpe e o STJ livrou o hotel Emiliano da penhora



A história que a grande imprensa contou sobre o Hotel Emiliano é um épico. O ex-garimpeiro Carlos Alberto Fernandes Filgueiras venceu na vida e, depois de uma parceria com o cantor Roberto Carlos, inaugurou um empreendimento que mudou o conceito de hotelaria no Brasil.

Pela narrativa oficial, Filgueiras seria um homem generoso, que ajudou o ministro Teori Zavascki a superar a dor do luto pela morte da esposa.

Um empreendedor bem sucedido e generoso, que levou o amigo no seu avião particular para um fim de semana prolongado em sua ilha particular em Paraty.

O que você não sabe – por que a grande mídia contou — é que o Hotel Emiliano havia sido penhorado pela Justiça por causa de uma fraude – fraude mesmo, conforme apontou um juiz – perpetrada pelas empresas de Filgueiras contra uma família que, em má hora, aceitou um projeto de incorporação.

As empresas Tuama, Winner, CTD e IN Imóveis, do Grupo Tuama, de Filgueiras, construíram um condomínio em uma grande área que pertencia ao casal Antônio Victor e Beatriz Batista de Carvalho em Moema, uma das regiões mais caras de São Paulo.

Pelo contrato, as empresas de Filgueiras fariam um prédio com apartamentos de alto padrão e entregariam seis unidades aos proprietários da área.

As empresas de Filgueiras mudaram o projeto original, sem consultar os proprietários do terreno, fizeram unidades menores, venderam todas e não entregaram nenhum apartamento aos donos da área.

O casal procurou o escritório do advogado Carlos Miguel Aidar, ex-presidente da OAB em São Paulo, e há mais de 20 anos teve início uma disputa judicial.

A fraude foi comprovada e, depois de julgados todos os recursos, alguns anos mais tarde, a Justiça autorizou a execução da dívida. “A dívida não era mais só de seis apartamentos e a renda que esses apartamentos iriam proporcionar, ao longo de vinte anos.

A indenização hoje, para apurar na ponta do lápis, passa de 100 milhões de reais”, diz Carlos Miguel Aidar. Mas o escritório de Carlos Miguel Aidar não encontrou nenhum bem que pudesse ser executado em nome das empresas.

O escritório não desistiu e descobriu que as empresas tinham um sócio em comum, Carlos Alberto Fernandes Filgueiras. “Sendo ele o dono do hotel Emiliano, das empresas da sociedade Emiliano, nós requeremos a desconstituição da personalidade jurídica e o juiz de primeira instância liberou a penhora do hotel, das cotas e do terreno”, conta Aidar.

Filgueiras recorreu e derrubou a penhora no Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que não estavam esgotados todos os meios de recebimento.

O escritório voltou a pesquisar os bens das empresas e encontrou apenas uma casinha em São Luiz do Maranhão, de valor insignificante diante da dívida milionária.

“Nós voltamos a requerer a desconstituição da personalidade jurídica, o juiz voltou a deferir a desconstituição, ele recorreu ao tribunal, só que desta vez o tribunal manteve a desconstituição”, recorda Aidar.

Mas Filgueiras, na tentativa de impedir a execução da penhora do Emiliano, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça. Filgueiras mudou de advogado e colocou na causa Caio Rocha, que é filho do ex-ministro César Asfor Rocha, que foi presidente do STJ.

Na distribuição do processo, por uma incrível coincidência, o relator escolhido foi o ministro Raul Araújo, que é do Ceará, Estado de Asfor Rocha. O ex-presidente do STJ, pai do advogado contratado por Filgueiras, é considerado padrinho da indicação de Araújo ao STJ.

A ação já durava mais de vinte anos, os autores, Antonio Victor e dona Beatriz, já haviam falecido e os herdeiros é que tinham agora interesse (legítimo) na ação.

Era uma causa considerada ganha, de direito líquido e certo, mas o relator Raul Araújo, surpreendentemente, anulou a decisão do juiz de primeira instância.

O argumento do ministro foi que a desconstituição da personalidade jurídica já havia sido derrubada no Tribunal de Justiça de São Paulo uma vez (sim, uma vez, mas liberada no segundo julgamento.

Para Raul Araújo, era “coisa julgada”, no jargão jurídico. Os colegas acompanharam a decisão e, por 5 a 0, a penhora do Emiliano foi evitada.









Em razão disso, o processo em São Paulo foi arquivado e Filgueiras pôde seguir tranquilo como proprietário do Emiliano e expandindo os negócios, junto com a família.

Procurei os herdeiros do terreno. Um deles iria dar entrevista, mas, depois de uma reunião de família, desistiu, com medo. “É gente muito poderosa. Os familiares não querem que eu fale”, disse o parente.

Aidar não desistiu. Ele pediu o desarquivamento do processo. “Nós vamos continuar o processo, agora contra o espólio do Filgueiras, vamos tentar receber, seja junto aos seguros de vida, ao seguro do avião, enfim nós vamos nos cercar de todas as maneiras possíveis na tentativa de receber para os herdeiros daquele casal, Antônio Victor e dona Beatriz, que já são falecidos há muitos anos”.

Carlos Miguel Aidar tem consciência de não será uma tarefa fácil. “A gente sabe que ministros costumam se hospedar naquele hotel. O próprio ministro César Asfor Rocha ficava lá, ele e o Filgueiras iam almoçar muito naquele restaurante que fica ao lado, do Alex Atala. São pessoas facilmente encontráveis nesses locais”, afirma.

Aidar diz ainda que ficou muito surpreso quando soube que Teori Zavascki estava no avião de Filgueiras.

“O que causou muita estranheza nesta história toda, e talvez seja este o motivo da nossa conversa, foi ver o ministro Teori Zavascki, que eu reputo ter sido um grande jurista, um grande magistrado, embarcar num avião do Filgueiras. Isso para mim causou um desconforto, porque eu nunca imaginei que o ministro Teori fosse capaz de entrar no avião de um empresário, mas, enfim, entrou e a fatalidade acabou fazendo com que os dois acabassem morrendo – os dois mais uma moça e a mãe da moça que estava lá, além do comandante”.

Por Joaquim de Carvalho no DCM

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O que é uma nação? Servirá o Brasil de exemplo?

Socratião, reencarnação brasileira de Sócrates, estava sentado de pernas cruzadas e mãos entrelaçadas, à maneira dos iogues. Acabara de voltar da Índia e pegara a mania dos velhos budistas desocupados. Em volta dele, tentando desajeitadamente sentar-se do mesmo jeito, encontravam-se os discípulos Platião (reencarnação de Platão), Fedontião (reencarnação de Fédon), Antistião (reencarnação de Antístenes) e Cebestião (reencarnação de Cebes). Na porta da sala, Xantipa olhava feio para os vagabundos.






LIVRO PRIMEIRO

– O que é uma nação? – indagou o cínico Socratião. – Algum de vocês saberia me explicar o que é uma nação?

– Eu posso – disse o linguarudo Platião, o aristocrata de ombros largos. – Nação é um enxame de pessoas vivendo em comum por vontade própria.

– Quer dizer que cada seita evangélica constitui uma nação diferente? – retrucou Socratião. – Não te parece limitada sua definição? Alguém tem sugestão melhor?

– Nação é uma comunidade estável, guiada por leis comuns – disse Fedontião.

– Vamos supor que sim – admitiu Socratião. – De forma que, dessa comunidade, alguma pessoas vivem no Brasil, outras na Austrália, outras na China. Além disso, cada cardume fala uma língua diferente. É esse o seu conceito de nação?

– Nação é uma comunidade estável, guiada pelas mesmas leis, vivendo num mesmo território e falando a mesma língua – disse Fedontião, acrescentando território e língua a seu conceito de nação, numa tentativa de engrupir o velhote.

– Ainda não basta – disse Socratião. – Me parece que algo falta para chegarmos ao significado de nação. Talvez o conceito de parasitismo delirante galopante. E esse negócio de estabilidade está me parecendo delírio.



LIVRO SEGUNDO

– Andei discutindo o assunto com Aristotião – disse Platião. – Os elementos constituintes de uma nação, segundo ele, são território, língua, religião, costumes, leis e tradição. Esse conjunto de fatores constituiria uma verdadeira nação.

– Vejamos se ele está conceitualmente certo – disse Socratião. – São Paulo e o Nordeste brasileiro constituiriam uma verdadeira nação, segundo Aristotião?

– Não creio – disse Antistião. – O povo formador de São Paulo, em sua maioria, só pensa em poder e grana, enquanto os nordestinos, via de regra, gostariam de ser felizes (sic), se e quando fosse possível neste saco de gatos tropical tupiniquim.

– Escravos e senhores constituem uma mesma nação, ainda que vivendo no mesmo território, possuindo os mesmos costumes e falando a mesma língua?

– É evidente que não – interveio Cebestião. – Pensei exatamente nessas duas cáfilas: São Paulo e Nordeste. Notoriamente, São Paulo costuma escravizar os nordestinos ou sugá-los que nem morcego hematófago. Eis o parasitismo urbano.



LIVRO TERCEIRO

– Vamos suspender o juízo por alguns instantes e cuidar de outros aspectos – ponderou Socratião, coçando o nariz e acomodando-se melhor sobre as pernas. – No caso do Rio de Janeiro, vocês diriam que constitui uma nação com São Paulo e Minas Gerais? E, indo um pouco além, também com o Norte?

– Creio que não – disse Platião. – Os cariocas, pelo menos os abençoados por Deus e bonitos por Natureza, vivem de praia, futebol e samba.

– E os demais cariocas? – indagou Socratião.

– Ah, esses vivem grimpados nos morros – respondeu Platião –, treinando bala perdida, entregando droga a domicílio e promovendo arrastões turísticos.

– Preconceituoso você, hein, Platião? – ironizou Fedontião. – Com certeza você reencarnou paulistano, daí tanto preconceito contra o Rio.

Platião, que tinha estopim curto, saltou em cima de Fedontião, no que teve de ser contido por Antistião e Cebestião, que o mantiveram subjugado e de cara no chão. Não antes, porém, que Fedontião tivesse o nariz e dois dentes quebrados por um murro do irritável Platião.



LIVRO QUARTO

– Vejamos Minas Gerais – continuou Socratião, sem ligar para a briga. – Seu operoso (sic) povo vive entre montanhas, trabalha (sic) em silêncio e é dividido em seis partes: Centro, que gravita em torno do Curral del Rei; Sul, que gravita em torno de São Paulo; Triângulo, que gravita em torno do próprio umbigo; Zona da Mata, que gravita em torno do Rio de Janeiro; Vale do Rio Doce, que gravita em torno dos Estados Unidos e Vale do Jequitinhonha, que gravita em torno da miséria e do calorão mais infernal deste lado do mundo. O mais importante, contudo, não é isso.

– E o que será mais importante, mestre? – indagou o puxa-saco Euspesitião, que acabava de reencarnar e achou a arenga de Socratião longa demais, temendo perder leitores pelo excesso de firula.

– Uma nação, suponho, deveria ser uma alcateia de pessoas vivendo no mesmo território, falando o mesmo idioma tendo os mesmos costumes e, principalmente, buscando realizar os mesmos objetivos, que seriam comuns à grande maioria do povo. Infelizmente, este último quitute não é exequível atualmente nestes tristes trópicos em que reencarnamos. E digo mais: ele me parece completamente utópico.



LIVRO QUINTO

Depois dessa nova arenga, Socratião se calou. Platião pensou se o velho mestre não estaria caducando. Fedontião ponderou se não estaria na hora de fundar sua própria escola. Antistião passou a cantarolar um sambinha. Cebestião, com lágrimas descendo pela cara barbuda, bebeu a taça de cicuta destinada a Socratião e apagou ali mesmo.

Socratião, desalentado, balançou a cabeça e finalizou:

– Bem que tentei, mas me parece impossível transformar o Brasil numa nação, mesmo que formada de cáfilas, enxames, cardumes ou alcateias. Mas devemos cair fora, pois vejo que Xantipa perde a paciência e já nos ameaça de vassoura em punho.

Por Sebastião Nunes no GGN