sábado, 7 de novembro de 2015

Como o Poder Judiciário sacia sua fome e garante sua casa


Os juízes e desembargadores gaúchos vão receber, individualmente, R$ 38,3 mil de auxílio alimentação. O poder judiciário outorga privilégios a si mesmo.




O site da Radio Guaíba deste 6 de novembro publica: “Os juízes e desembargadores gaúchos vão receber, individualmente, R$ 38,3 mil de auxílio alimentação retroativos a 2011. Cumprindo a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicou em sua última edição do Diário Oficial o ato administrativo que garante o repasse. O valor é proporcional aos R$ 799 reais por mês de subsidio alimentação para os meses desde 2011 e valerá para os salários futuros. Os juízes tem salários a partir de R$ 22,2 mil reais.”

A Zero Hora destaca que esse auxílio vai se estender ao Ministério Público e à Defensoria. Nesse jornal, o escândalo da notícia se comprova ao lado da nota. Apesar do déficit orçamentário do Estado, previsto para 2016, subir a R$4,6 bilhões, o presidente da Famurs, Luiz Carlos Folador, “está pedindo ao relator do Orçamento na Comissão de Finanças, Marlon Santos, quatro emendas, sendo R$80 milhões para financiamento do transporte escolar, R$120 milhões para custeio dos hospitais de pequeno porte, R$100 milhões para acessos asfálticos e R$4 milhões a mais para o Fundo de Assistência social.”

Resposta do relator: “Estamos repartindo miséria. É muito difícil contemplar todos os pedidos.” Miséria seletiva, então, como a história tem repetido. Como sempre, os tais auxílios ao Poder Judiciário passam longe dela. 

Se necessidades públicas como aquelas cuja satisfação é inadiável, reivindicadas pelo presidente da Famurs - transporte escolar, hospitais de pequeno porte, acessos asfálticos, fundos de assistência social - forem comparadas com benesses salariais estendidas a essas carreiras jurídicas, podemos retirar algumas conclusões dessa desigualdade imoral: 

A primeira, mais do que óbvia, explica e justifica a inconformidade e até a indignação do povo com vantagens salariais levadas a um tal patamar, acrescentadas a quem já é tão bem remunerado. Como explicar isso a pessoas que recebem o bolsa família para mal poder se alimentar, outras que se socorrem do programa Minha Casa, Minha Vida para poder adquirir casa própria, um sem número de desempregadas, de sem-teto e de sem-terra, lutam diariamente para simplesmente sobreviver, não faltando, para tanto, o preconceito generalizado de que se encontram nessa situação por sua única e exclusiva responsabilidade?

Seria justo medir quanto dinheiro as políticas sociais responsáveis por manter toda essa multidão viva, nem que seja num padrão básico de dignidade, estão perdendo com o auxílio moradia e o auxílio alimentação pagos a quem agora está “legalmente” (!?) habilitado a recebê-los. 

A segunda pode ser vista nas razões de serem utilizados subterfúgios para aumentar o valor dos salários de carreiras jurídicas, sonegando indiretamente o imposto de renda e dessa forma lesando toda a população carente de serviços públicos. Isso envergonha, e muito, as/os integrantes honestas/es e probas/os dessas carreiras, ao ponto de se obrigarem a renunciar aos tais penduricalhos. 

Conforme reconheceu o próprio desembargador Túlio Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do Tribunal de Justiça do Estado, de acordo com o site da Guaíba “admite que a medida causa antipatia da sociedade. A reserva de simpatia da população com o Poder Judiciário se desgasta. Eu não acho que nós percamos credibilidade, porque isso vem do trabalho e das decisões. Mas não é nem um pouco simpático, aumento de salário de quem ganha mais é sempre difícil, e aumento de salário indireto, com nome de auxílio, é menos simpático ainda. A perda do ponto de vista da imagem do Poder Judiciário é evidente”.

Perde credibilidade sim, pois é exatamente no trabalho e nas decisões da magistratura que o povo avalia a conduta pessoal de quem representa esse Poder. O Judiciário é um servidor do povo, trabalha por ele, para ele e com ele. De qual autoridade vai se valer quando está subtraindo de quem serve parte substancial dos recursos necessários para garantir o gozo e o exercício de direitos humanos fundamentais sociais devidos como prioritários, pelo Poder Público, como condição de vida e liberdade?

É preciso sublinhar-se a gravidade dessa falta. Trata-se do reconhecimento de uma pura e simples simulação. Os auxílios, seja o de moradia, seja o de alimentação, de auxílio só tem o nome, como o próprio desembargador reconhece, nisso se comprovando, pois, a existência de um vício legal, de forma e conteúdo, diuturnamente enfrentado pelo Poder Judiciário e por ele, paradoxalmente, punido, civil e penalmente.

Pode e deve punir o que ele mesmo faz? O art. 167, parágrafo primeiro, inciso II do Código Civil, por exemplo, retira todo ou parte de qualquer efeito de negócios jurídicos nos quais se verifique simulação. Ela é suficiente para serem declarados nulos, quando “contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira”. 

Bem, vão afirmar as/os as/defensoras/es desses auxílios: isso só vale para negócios jurídicos e lá no Direito Privado. Para contrariar-se essa desculpa nem há necessidade de se lembrar que o Direito Privado tem de ser interpretado em harmonia com a Constituição Federal. “Cláusula não verdadeira”, igualmente, constitui ilícito passível de rejeição em qualquer contexto, não exclusivamente jurídico. Assim, a simulação é imoral também e, justamente por enganar e mentir, ela obriga o Poder Judiciário a não se socorrer dela, pelo artigo 37 da mesma Constituição, seja a pretexto do que for, independentemente de outra qualquer consideração.

Esse Poder está sujeito ao princípio constitucional da moralidade, não simulando, não enganando e não mentindo. Nos artigos 171 a 179 do Código Penal, aliás, quando esse trata dos crimes de estelionato e outras fraudes, não faltam disposições semelhantes para demonstrar que a simulação não é somente um ilícito jurídico civil e privado. Se assim fosse, toda essa crise política vivida atualmente no país, já teria sido vencida sem qualquer cogitação dos ilícitos morais responsáveis pela sua eclosão. 

Numa das famosas bem aventuranças louvadas por Jesus Cristo, disse ele: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Evangelho de São Lucas, capítulo 5, versículo 6). É uma lástima, mas o Poder Judiciário brasileiro, com as exceções de sempre - ainda bem - à vista dos privilégios outorgados a si mesmo, não está muito interessado em se saciar desse pão, beber dessa água, nem reparti-lo/a nas casas onde mora, muito menos nos tribunais onde trabalha.

Por Jacques Távora Alfonsin na Carta Maior


Créditos da foto: Carlos Humberto/SCO/STF

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Quando a Lava Jato atenta contra o Estado brasileiro e sua soberania


O que causa enorme controvérsia é a aparente cooperação dos procuradores brasileiros com a justiça norte-americana, fornecendo provas contra a Petrobras.





Além das mudanças de rumo no tocante ao nível de investimento e estratégia de longo prazo da Petrobras, a Lava Jato desencadeou uma série de processos contra a estatal na justiça norte-americana. Se aqui o entendimento é de que houve um saque à empresa promovido por um cartel de empreiteiras, nos EUA alguns setores concebem que a própria Petrobras tem responsabilidade pelo ocorrido, devendo ressarcir acionistas e responder por infração à legislação de valores mobiliários local.

Tais processos, no entanto, já eram esperados, tendo em vista o oportunismo dos agentes de mercado, que os transformam em estratégia para auferir lucros, sendo a justiça em si algo marginal. O que causa enorme controvérsia nessa questão é a aparente cooperação dos procuradores brasileiros com a justiça norte-americana, fornecendo provas contra a Petrobras, o que abre uma série de questionamentos em relação a soberania e interesse nacional brasileiros.

Na opinião do entrevistado André Araújo, que é advogado da área internacional com escritório em Washington, ex-Conselheiro da CEMIG e ex-Presidente da EMPLASA, a cooperação com as autoridades norte-americanas configura um ataque ao interesse essencial do Estado brasileiro, constituindo “interferência” e “intromissão” em nosso sistema de poder. Araújo destaca que os prejuízos à Petrobras podem superar os US$ 5 bilhões, lembrando ainda que enfraquecer a estatal “atende a interesses geopolíticos dos EUA”.

Confira:

De que forma estão se desenrolando os processos contra a Petrobras nos EUA? O que os acionistas alegam para processar a estatal brasileira?

A. Araújo: Há três conjuntos de processos: O da Comissão de Valores Mobiliários (SEC), do Departamento de Justiça e dos acionistas minoritários, chamadas “ações coletivas”, que tem a porta aberta para novos acionistas irem aderindo. As duas primeiras são ações públicas e a última é ação privada, mas que vai usar a “alavanca” das ações públicas.

É verdade que existem procuradores brasileiros colaborando com a justiça norte-americana contra a Petrobras? Se sim, isso é legal?

A. Araújo: Parece evidente que sim. A base legal seria o Acordo de Assistência Judiciaria Brasil-EUA de 2001, aprovado pelo Decreto 3.810 assinando pelo Presidente FHC. Mas o Acordo tem uma exceção pela qual a colaboração não cabe, é o Art.3º – Item 1 – Letra b) quando a colaboração vai contra o INTERESSE ESSENCIAL do Estado contratante. A Petrobras é controlada pelo Estado brasileiro que nela tem um interesse essencial, então o Estado não pode ajudar outro Estado a processar a sua empresa, porque isso atinge o interesse essencial do Estado-parte, nesse caso o acordo em questão não poderia operar.

De modo geral, os Acordos de Assistência Judiciaria tem como objetivo a persecução criminal de delinquentes que operam internacionalmente, esses acordos NÃO foram, de modo algum, pensados para entrar na área politica de cada um dos Estados contratantes, não cabe a outros Estados se intrometerem na área politica de outros países e os eventos em torno da Lava Jato são essencialmente de natureza politica. Acordos de Assistência não são desenhados para esse tipo de caso sensível nas relações de poder dentro de um Pais.

Corrupção política tem efeitos imediatos sobre as relações de poder internas de um País e nunca se poderia cogitar de envolver outros países nessa luta porque esta interferência significa clara intromissão no sistema de poder do Estado contratante. Não consta, por exemplo, que o México, vizinho de cerca dos EUA, tenha alguma vez cogitado pedir apoio do Departamento de Justiça para combater a corrupção política dentro do México, que é histórica.

Existe algum acordo de cooperação entre os EUA e o Brasil? Seria possível requisitar dados comprometedores relativos a empresas norte-americanas ao judiciário de lá?

A. Araújo: Existe o já indicado Acordo de 2001, nunca soube que o Brasil tenha requerido assistência do Departamento de Justiça em casos como o do contrabando da CISCO, do vazamento de petróleo da CHEVRON ou dos pilotos do Legacy.

Se houvesse esse pedido por parte do Brasil não sei se seria atendido, examinariam o caso com extremo cuidado se fosse o caso de atingir uma empresa americana. O acordo não foi pensado para isso, foi desenhado, por exemplo, para pegar um estelionatário brasileiro que fugiu para Miami.

Que levaria um policial, procurador ou juiz brasileiro a cooperar com autoridades norte-americanas? Em que bases se dão estas relações?

A. Araújo: Pela visão focada exclusivamente nas suas funções, que eles transformam em missão. Então para fazer justiça vale procurar ajuda de outro Estado, sem pensar que essa ajuda tem um preço e que esse preço pode atingir outros interesses do Brasil. Nesse caso da Petrobras, NUNCA deveriam pedir ajuda dos EUA porque essa ajuda coloca o Departamento de Justiça dentro do processo no Brasil e foi a partir dessa ““puxada para dentro do processo” que o Departamento de Justiça iniciou seu próprio processo contra a Petrobras, o que pode custar CARÍSSIMO ao Brasil. O Brasil foi a Washington procurar sarna para se coçar, sem o processo de Curitiba não haveria o processo de Washington.

Até que ponto esta influência estrangeira trabalha? É possível dizer que os EUA usam desta visando uma determinada agenda geopolítica?


A. Araújo: Não acredito que haja um plano estratégico previamente elaborado. O Departamento de Justiça funciona como o Ministério Público aqui, são profissionais do mesmo perfil, com o mesmo senso de missão. Não acredito que eles vejam outros interesses dos EUA, mas involuntariamente esse processo pode fragilizar a Petrobras, e dentro da politica geral americana, desde a criação da PEMEX em 1938, os Estados Unidos são ideologicamente contra petrolíferas estatais em qualquer Pais, portanto, nesse contexto, enfraquecer a Petrobras atende a interesses geopolíticos dos EUA a longo prazo.


Existiriam meios para os Estados se protegerem destas manobras? Que se pode fazer quanto a isso?


A. Araújo: Os Estados NÃO devem usar com frequência e de forma leviana esses Acordos de Assistência e estes DEVEM sempre ser monitorados pelo Ministério da Justiça para que não se use a toda hora. A vinda de Promotores estrangeiros ao Brasil deveria ser autorizada com cautela e rigor, não pode ser uma coisa tão liberada como parece ser e resta a saber se o Ministério da Justiça, que é a AUTORIDADE CENTRAL dentro do Acordo, está ciente dessas viagens e se as autorizou, pelo que sei, ninguém consultou o Ministério da Justiça para anfitrionar colegas americanos em Curitiba.

Na minha opinião esse Acordo JAMAIS poderia ser invocado no caso da Lava Jato, que é um grande caso politico antes de ser judiciário, a ser resolvido exclusivamente dentro do Pais sem recorrer a autoridades estrangeiras que uma vez envolvidas vão ver seus próprios interesses, como já aconteceu nesse caso, e o que parecia um caso de colaboração desinteressada vira uma bomba para o Brasil.

Quanto a Petrobras. Que estratégia a empresa adotou para se defender nas cortes norte-americanas? A perspectiva é de vitória ou podemos esperar prejuízos?

A. Araújo: Pelo que sei o que foi feito até agora é contratar dois escritórios de advogacia americanos para investigações internas, contratados por quase R$ 200 milhões. Não soube da contratação de escritórios para defesa na ação FCPA do Departamento de Justiça, na SEC e nas ações coletivas, e nem da contratação de escritórios de lobby para defesa politica da Petrobras em Washington. Quer dizer, não digo que não foram contratados advogados nos EUA, digo que não sei se foram.

Qual o potencial de prejuízo desses processos, que valores estão envolvidos? Qual seria a melhor estratégia de defesa levando em conta as peculiaridades da justiça norte-americana?

A. Araújo: O potencial de prejuízo dos processos varia de US$ 1,6 bilhão, primeiro número que saiu na imprensa americana como multa do DofJ para a Petrobras, até US$3 bilhões, para esse mesmo processo. Os demais processos especialmente das class actions, que são ações coletivas de minoritários, fala-se US$1 bilhão a US$2,5 bilhões, mas se tratam de estimativas ainda muito vagas.

Quanto ao processo de defesa acho, no meu modo de ver, muito conformista às pretensões do sistema americano, na minha opinião a linha de defesa deve ser mais contundente e não tão conformista como parece ser a linha da Petrobras, o Brasil não é apenas uma companhia, tem o peso do Estado que não está sendo usado. Em um processo internacional há outros vetores de País a País que não se usam em processos apenas internos nos EUA, os tipos de advogados que estão sendo contratados são adeptos do sistema americano e operam sem contestá-lo. A pretensão da lei americana de aplicar jurisdição da FCPA a empresas brasileiras – que não tem qualquer negócio nos EUA – como já disseram que pretendem fazer, é disconforme ao direito internacional e nenhum Pais aceita tal projeção extraterritorial de jurisdição. Tal pretensão é completamente politica e eles não ousam se aventurar contra empresas russas e chinesas, mas vão pretender contra empresas brasileiras, como está no despacho da Reuters de agosto passado.

No geral acho a defesa brasileira extremamente conformista e muito tímida. Minha linha de argumentação é que a Petrobras é vítima e não autora, portanto não pode ser ré da FCPA. A pergunta que faço frente a este quadro é: Porque não há processos contra a SANANGOL, empresa que vende todo o petróleo produzido em Angola aos EUA, e de onde saíram megafortunas roubadas que inclusive estão na lista da FORBES?

Via 
Rennan Martins - Desenvolvimentistas na Carta Maior

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Os odiadores de ontem, os odiadores de hoje



Eva Perón vivia seus últimos dias de vida. Tinha apenas trinta e três anos de idade. Sofria pela metástase de um câncer que surgira em seu útero.

O drama de Evita tocava milhões de argentinos e argentinas que faziam vigília por sua recuperação.
Em 1952, a elite argentina comemorou o câncer e a morte da mulher que combateu seus privilégios e simbolizou um governo em favor dos “cabecitas negras”.





Mas não todos tinham compaixão por sua doença. A admiração por Eva, que se convertia em uma espécie de ideologia política própria, sem nenhuma estruturação litúrgica, porém decididamente muito ligada à identidade de classe possível na Argentina dos anos 50, era considerada pelas elites como coisa menor. Dizia-se (e se diz ainda), que era algo como “coisa de empregada doméstica”.

Nem a dor, nem a morte que se avizinhava. Nenhum drama inibiu quem colocava o ódio político e o ressentimento social acima de todas as coisas.

“Viva o Câncer!”. Esta foi a frase que apareceu escrita no muro de sua residência, pouco antes de sua morte. Havia muita gente regozijando por seu padecimento. Festejando sua morte.

Não era pra menos. Pra quem levava a noção de hierarquia social como algo naturalizado e parte integrante de si mesmo, a figura de Evita era absolutamente insuportável.

Eva nascera fruto de uma relação extraconjugal de seus pais. Nunca foi totalmente reconhecida. No velório de seu pai, havia sido impedida de prestar seu último adeus. Quando se mudou para Buenos Aires, Evita passou a ser uma atriz de rádio. As radionovelas explodiam no país inteiro. O rádio passava a ser o principal veículo para integração do país e também para a comunicação com as massas de trabalhadores.

O rádio era solene. Não era minimalista como nos nossos dias. Era um aparelho grande a ser colocado no meio da sala. As famílias se reuniam em volta dele. Perón, como nenhum político de seu tempo soube tirar proveito desta nova ferramenta de comunicação. Da mesma forma, como ninguém até então, soube enxergar o trabalhador operário como um ator político relevante a ser mobilizado para a construção do trabalhismo na Argentina. Em bairros e cidades mais afastadas, o rádio era pendurado nos postes para que os mais pobres também pudessem ouví-lo.

Eva Duarte, como qualquer atriz de rádio ou de teatro não ocupava um lugar social muito distante das prostitutas.

Iniciou uma relação amorosa com Perón. Um homem mais velho e poderoso. Por virtude e por fortuna, Perón se converteu em presidente da Argentina, chegando ao poder nos braços do povo. “Cabecitas Negras” eram chamados seus eleitores. Viviam nos subúrbios de Buenos Aires, mas sequer podiam frequentar os luxuosos espaços da região central. Muitos passaram a conhecer o centro nas manifestações políticas do peronismo. Era um escândalo. A massa de descamisados e de pés descalços. Nadavam nos chafarizes, tomavam mate nas praças antes exclusivas dos grandes cavalheiros.

Evita, agora primeira-dama, passou a frequentar os salões da oligarquia argentina. Jamais foi aceita. Os interesses sazonais das elites econômica e política, obrigava os grandes negociantes a aturarem aquela “bastarda”.

Não eram raras as vezes em que, após a chegada de Evita, as damas da sociedade se retiravam de recintos como o famoso Teatro Colón. Chefes religiosos se recusavam a reconhecer sob a ótica da Santa Igreja a união de Juan Domingo e Eva.

O poder modifica a todos. É uma experiência definitiva. Alguns se afogam em meio a vaidades tolas. Sentem-se entorpecidos pelo luxo e pela adulação de gente falsa e mentirosa. Não são poucos aqueles que esquecem suas raízes. Que mudam de classe. O mundo está repleto de gente que com o poder perde a capacidade de olhar para si e próprio e também condição de enxergar o mundo a sua volta. Concentram-se apenas em pertencer e conservar o status adquirido.

Mas Evita não foi assim! Eva tinha uma personalidade controversa, mas soube como poucos na história fazer o bem. Falava como uma mulher do povo. Cometia erros gramaticais que eram jocosamente ridicularizados por alguns. Enfrentava a oligarquia. Fez o que pode para ajudar os necessitados. Recebia a todos em seu gabinete. Dava desde presentes de natal até máquina de costura, brinquedos, tratamento dentário e hospitalar. Fazia o que era possível. Não era uma primeira-dama tradicional. Mesmo com a saúde muito frágil, na frente de todos seus assessores perplexos beijava os leprosos e outros doentes na boca.

Por Rafael Castilho

domingo, 30 de agosto de 2015

CPMF: o sultanato rentista e o GPS político do governo


Dilma ficou sozinha na linha de tiro dos endinheirados. E recuou da CPMF. O governo trata dilemas históricos como se fossem problemas contábeis.



É na crise que a distribuição da riqueza adquire transparência transformadora na vida de uma sociedade.

Esse é o momento vivido hoje pelo Brasil.

Será desastroso não saber enxerga-lo.

Transformar essa transparência em um engajamento político capaz de destravar o Rubicão do desevolvimento, é o desafio que se impõe ao campo progressista nesse momento.

Não há muito tempo a perder.

A marcha desastrosa da recessão evidencia o acirramento da luta de classe dissimulado na chave do ‘ajuste’ fiscal.

O recuo do governo em relação à CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, conhecida como ‘ imposto do cheque’, resume em ponto pequeno toda a nitroglicerina armazenada nessa encruzilhada histórica.

É inútil dar ao extraordinário um tratamento de rotina.

O governo esqueceu de mobilizar a fila do SUS em defesa da CPMF.

Tratou como esparadrapo contábil um conflito de interesses que condensa em ponto pequeno a dimensão distributiva dos impasses que paralisam a nação.

Na estimativa do próprio ministério da Fazenda, a nova CPMF poderia gerar uma arrecadação da ordem de R$ 80 bi.

Portanto, superior à meta anterior do ‘ajuste’ fiscal fracassado, de R$ 66 bi.

O que remete à pergunta óbvia.

Por que não se começou pela CPMF, em janeiro, quando o fôlego político era maior, ampliando o espaço para uma revisão negociada e gradativa do motor do crescimento?

A retomada da CPMF em meio à crispação atual só teria viabilidade precedida de um amplo debate com as forças sociais.

O elevado potencial educativo desse tributo poderia (pode?) gerar o discernimento social indispensável a uma reordenação econômica alternativa ao arrocho.

O recuo desgastante deste sábado evidenciou mais uma vez o erro de encaminhamento que pode ser resumido em uma constataçao: o governo ainda supõe existir uma solução genuinamente econômica para a crise que consome o país.

Não há.

E Brasília estourou o limite de crédito para errar no método.

Há uma chance de consertar o estrago?

Talvez.

Desde que o recuo seja transformado em ofensiva de comunicação com a sociedade e de negociação com seus distintos segmentos.

O que havia de tão especial na CPMF para isso?

A questão tributária condensa uma boa parte dos desafios que imobilizam o país e o Estado brasileiro.

A CPMF reúne de forma ostensiva as duas pontas do que está em jogo.

De um lado, a carência de recursos para um salto de abrangência e qualidade nos serviços essenciais e na infraestrutura.

De outro, a natureza parasitária de um pedaço da elite, que encara o país como um substrato a ser fagocitado, e resiste em assumir responsabilidades compartilhadas.

Sem as quais não existe sociedade, futuro e nem desenvolvimento.

A rejeição metabólica em pagar imposto é um sintoma desse divórcio de quem já montou apartamento Miami e transferiu o saldo para o HSBC suíço...

Vencer a guerra da opinião pública hoje no Brasil passa por fazer as perguntas que o conservadorismo não pode responder sem se autodenunciar.

A pergunta que a CPMF coloca para a sociedade e que o governo não soube explicitar tem a contundência de um despertador de quartel.

Numa intrincada transição de ciclo de desenvolvimento, como a atual, a sociedade deve privilegiar a saúde da população, ou o privilégio fiscal da riqueza financeira?

Curto e grosso: a fila do SUS ou a CPMF?

Macas nos corredores, ou fim do sultanato rentista incrustrado na nação?

Não faltam argumentos a quem quiser promover o discernimento do nosso tempo.

Bancos pagam menos impostos no Brasil que o conjunto dos assalariados.

Aplicações financeiras mantidas por dois anos pagam 15% sem qualquer progressividade.

Lucros e dividendos recebidos por pessoa física gozam de isenção fiscal desde 1996, gentileza concedida pelo governo do PSDB aos endinheirados.

Tem muito mais.

Artimanhas contábeis permitem que um banco lance o pagamento de dividendos dissimulados em despesa de juros sobre o capital próprio.

Não pagam imposto com essa artimanha. E o acionista beneficiado paga só 15%.

O imposto sobre o patrimônio dos ricos contribui com menos de 1% do PIB na composição da receita total do Estado brasileiro.

Estamos falando da vida leve de gente que compõe um circuito pesado.

Aos fatos.

O 15º relatório do BCG, Global Wealth 2015: Winning the Growth Game, aponta que, no ano passado, o Brasil, possuía US$ 1,4 trilhão em riqueza privada, à frente do México (US$ 1,1 trilhão) e Chile (US$ 4 bilhões). ]

Até 2019, ou seja, ao final do governo Dilma –tudo o mais inalterado no sultanato rentista-- estima-se que a fortuna financeira atingirá US$ 2,9 trilhões (maior que o PIB brasileiro do ano passado, US$2,2 trilhões).

Só nas contas dos especiais no país , os private banking daqui –sem contar lá fora-- o total das aplicações no final do semestre passado era de R$ 694 bilhões (dados do insuspeito jornal Valor de 28-08-2015).

Ou seja, mais de dez vezes a economia original prevista pelo arrocho fracassado de Joaquim Levy.

A expectativa dos managers do rentismo é de que essa piscina de Tio Patinhas chegue ao final de dezembro com uma cota entre 12% e 15% superior a atual.

Como?

Sem colocar nem um dedo do pé na atividade produtiva. E gozando dos juros, das benesses, isensões e mimos fiscais sabidos.

As fronteiras do sultanato podem ser ainda maiores.

Os dados considerados referem-se à contabilidade das operações financeiros sabidas e declaradas.

Embora não declarado, é sabido no entanto que o Brasil é proeminente nos rankings de sonegação urbi et orbi.

Um deles, o Tax Justice Network, situa o país como vice campeão mundial, atrás apenas da Rússia, respectivamente com 13,4% e 14,2% do PIB sonegados anualmente aos fundos públicos que financiam o presente e o futuro da sociedade.

Cálculos do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) mostram que só no primeiro semestre de 2015, R$ 320 bilhões teriam sido sonegados no país.

Mais de R$ 1,1 trilhão seria a soma das dívidas tributárias acumuladas.

A maior fatia – R$ 723,3 bilhões – envolve grandes devedores: empresas que juntas representam menos de 1% das pessoas jurídicas registradas no Brasil, diz o Sinprofaz.

Assim por diante.

E com um agravante dramático.

Nem mesmo o que se consegue arrecadar efetivamente é canalizado de fato à redução dos abismos sociais e ao desenvolvimento produtivo.

Filtros de classe se impõem pelo caminho

A dívida pública é o principal deles.

Ela funciona como uma espécie de reforço na regressividade do sistema fiscal brasileiro.

Assemelha-se a um enforcador que subordina o princípio da solidariedade à primazia rentista.

O mecanismo ‘autossustentável’ ganhou seu upgrade com a ascensão da agenda neoliberal que privilegiou o Estado mínimo em todo o mundo.

Em vez de arrecadar, a lógica do mainstrem recomenda isentar os ricos – para que eles se sintam encorajados a investir...

Sem espaço político para taxar o sultanato rentista --como se viu mais uma vez agora, com o cerco em torno da CPMF, o governanante é levado a compensar a anemia tributária com endividamento público.

Toma emprestado e paga juros por aquilo que deveria arrecadar taxando heranças, operações financeiras, dividendos, fortunas, remessas, etc.

A dívida cresce.

Engessa o futuro do desenvolvimento.

Eleva a dependência em relação ao mercado financeiro.

É uma corrida para frente infernal.

Quando a economia desacelera e a receita cai, o pedal trava e o insustentável explode no colo do Estado impondo escolhas difíceis.

Esse é o momento em que se encontra o Brasil.

O imenso piquete de engorda do capital rentista representado pela dívida pública já consome 7,5% do PIB em juros.

Deve bater em 8% até o final do ano, graças a uma Selic generosa de 14,25% -- a taxa de juro mais alta do mundo.

Essa singularidade faz do Brasil uma excrescência financeira.

Um paraíso de bombeamento fiscal de perversidade jamais vista em nenhum outro lugar do planeta.

Nem mesmo em economias reconhecidamente asfixiadas por uma relação dívida pública/PIB duas ou três vezes superior à brasileira, regstra-se deslocamento de riqueza semelhante aos rentistas.

Casos de Espanha, Portugal e Grécia, por exempo, em que o total do juro pago equivale, respectivamente, a 2,5%, 4% e 4,5% do PIB.

O sultanato brasileiro –do qual fazem parte também bancos, empresas etc- reúne pouco mais que 71 mil pessoas, segundo o Ipea.

A renda mensal é superior a 160 salários mínimos.

Essa ínfima parcela de 0,05% da população controla 14% da renda total do país.

E detém quase 23% da riqueza financeira (ações, moedas, aplicações, títulos públicos etc)

Aspas para o jornal Valor de 10-08-2015:

‘As pessoas mais ricas do país, que ganham mensalmente mais de 160 salários mínimos, pagam muito pouco imposto de renda. Os dados divulgados no mês passado pela Receita Federal, em sua página da internet, mostram que esse grupo de cidadãos paga ao leão apenas 6,51% de sua renda total.’

Dito de modo ainda mais claro: o píncaro da riqueza brasileira tem 65,8% do total de seus rendimentos isentos.

É a serviço desse sultanato que o jornalismo isento, o PSDB, os cunhas, mirians, sardenbergs e assemelhados abriram fogo cerrado contra o governo, obrigando-o a retroceder no propósito de taxar esse caudal obsceno com uma aliquota de 0,38% sobre operações financeiras.

É esse o teor explosivamente pedagógico da CPMF.

O recuo avulta seu paradoxo quando se verifica quem de fato foi derrotado do outro lado.

O SUS, o maior sistema público de cobertura universal de saúde do mundo. Um dos maiores trunfos da luta pela construção de uma demcracia social no país.

Criado pela Constituição de 1988, hoje ele atende a 75% da população brasileira.

O médico e ex-ministro da Saúde, Adib Jatene (1929-2014), criador da CPMF, que morreu defendendo o tributo, enchia o peito de orgulho quando falava do SUS: 

‘Anualmente, o SUS interna 11 milhões de pessoas, faz 3 milhões de partos, 400 milhões de consultas. Nós erradicamos a poliomielite, o sarampo, a rubéola. Nós vacinamos mais do que qualquer país do mundo. Temos um programa de combate à Aids que é referência internacional. Fazemos hemodiálise para uma quantidade brutal de pessoas. Cirurgias complexas. Os transplantes de fígado feitos no Hospital Albert Einstein é o SUS que paga. Oncologia, medicamentos que os planos de saúde não cobrem... É um trabalho tão grande, que a população que pode (financeiramente) deveria vir ajudar espontaneamente, e não obrigada por tributos’.

O gigante, porém, soçobra.

Dos quatro mil procedimentos hospitares incluídos hoje na lista do SUS, 1500 estão com tabelas de remuneração gritantemente defasadas.

Consultas de média especialidade, um gargalo histórico do sistema, estão sendo acudidas pelo exitoso programa ‘Mais Médicos’.

Mas o funil dos exames e cirurgias trava a engrenagem e assume contornos de uma bola de neve insustentável.

Um dado resume todos os demais nessa equação: o gasto per capita ano com saúde no Brasil é de U$S 483; na Inglaterra, por exemplo, é de US$ 3 mil.

Que o governo tenha perdido a guerra da CPMF para uma realidade numérica tão exclamativa, que reúne, em uma margem, 0,05 da população detentora de 23% da riqueza financeira, isenta em 65,8% dos rendimentos; e de outro, um sistema de saúde que atende 150 milhões de brasileiros, mas se debate com déficit de recursos a ponto de manter uma defasagem de 90% no valor pago pelo tratamento de uma pneumonia, e ter fechado 15 mil leitos nos últimos cinco anos, é merecedor de reflexão.

Parece evidente que há um problema no GPS político do governo.

Que o leva insistentemente a tratar dilemas históricos como se fossem problemas contábeis.

Dando com o nariz na porta de quem não quer ouvi-lo.

E a negligenciar aqueles que de fato podem ajudá-lo a repactuar os rumos da economia e da nação.

Por Saul Leblon na Carta Maior

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Volta da CPMF merece aplauso




Quem acompanha este espaço sabe que em janeiro de 2011, quando Dilma Rousseff recebeu a faixa presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, escrevi que sua prioridade absoluta deveria ser restaurar a CPMF, o imposto do cheque capaz de assegurar um remédio duradouro para o financiamento da saúde pública.

A notícia de que, em 2015, Dilma Rousseff planeja recuperar uma nova versão do imposto do cheque merece aplauso. Estamos falando de uma garantia prevista no artigo 196 da Constituição, que diz:

"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

A rápida reação negativa de empresários e dos grandes meios de comunicação não deve ser vista como surpresa. Pode mostrar que não se fez um esforço prévio de explicação, negociação e convencimento – o que nunca é bom. Mas convém reconhecer que estamos diante de um conflito – comum em toda democracia – em que as diferenças estão claras há muito tempo.

Em 2007, a FIESP organizou uma campanha milionária para garantir a extinção da CPMF pelo Congresso. Conseguiu evitar a prorrogação ao impedir que o governo conseguisse reunir os últimos quatro votos que faltavam para formar a maioria necessária de dois terços.

Em 2013, quando Dilma criou o Mais Médicos, uma resposta emergencial ao colapso da saúde nos pontos mais pobres do país, montou-se um ambiente de sabotagem geral. Hoje, com todos os seus limites, o programa é um sucesso reconhecido – ainda que a saúde pública, em geral, aguarde imensas melhorias, como nós sabemos.

A reação à restauração da CPMF indica que a proposta pode transformar-se numa luta política relevante – e é bom estar preparado para ela.

Orquestrada pela turma do impostômetro, que expressa os interesses de quem se coloca acima das necessidades e direitos da maioria da população, a crítica à CPMF é socialmente desprezível e vergonhosa como argumento político.

Falando do ponto de vista da verdade tributária. Vivemos num país onde os cidadãos mais pobres estão condenados a arcar com a maior carga tributária. Numa injustiça conhecida, mas convenientemente esquecida, milionários e miseráveis pagam o mesmo imposto quando vão à feira ou entram na loja para adquirir um eletrodoméstico.

Nesta situação, a proposta que alimentou o imposto do cheque representa uma mudança necessária. Cobra uma taxa ínfima sobre a movimentação bancária de cada cidadão. Na prática, quem tem mais paga mais – o que ajuda a entender a estridência do coral de seus adversários.

Basta ler a imprensa especializada para confirmar que a recessão não chegou ao setor de saúde privada – e quem sabe isso nem venha a acontecer, já que vive um período de grande prosperidade.

Isso porque os seres humanos, estes animais chamados de racionais, não tem a menor disposição de colocar a própria vida em risco. Cada centavo que falta à saúde pública acaba sendo substituído por recursos extraídos do bolso de cada família.

O combate ao imposto do cheque é acima de tudo uma luta ideológica, dogmática e sectária, de quem deseja afirmar a superioridade da iniciativa privada mesmo num terreno onde acumula fracassos visíveis.

É um modelo que funciona – mal – nos Estados Unidos, que têm o mais caro e menos eficiente sistema de saúde entre os países com o mesmo grau de desenvolvimento.

Está condenado a funcionar de forma trágica em países com o perfil sócio-econômico do Brasil, onde os planos de saúde vendem aquilo que não podem entregar, até porque exploram um mercado de baixa renda disponível – e ocupam os primeiros lugares na lista de queixas de consumidores.

A ideia de partilhar o saldo da nova CPMF com estados e municípios pode ser politicamente engenhosa. A maioria dos governos estaduais e prefeituras encontra-se com o caixa quebrado, sem perspectiva de recuperação a curto prazo. O imposto do cheque pode estimular governadores e prefeitos a trabalhar o Congresso pela sua aprovação.

Também é necessário assegurar que os novos recursos -- a entrar em vigor no ano que vem -- estarão reservados, em sua maior parte, para reforçar o caixa da saúde pública e não para sustentar um orçamento cada vez mais empenhado a pagar taxas de juros altíssimas.

Paulo Moreira Leite, via 247

sábado, 8 de agosto de 2015

Dirceu deveria ser deixado em paz




Aos intelectuais, jornalistas e celebridades acadêmicas que têm se dedicado, nos últimos dias, a manifestar a decepção repentina com José Dirceu depois que ele foi conduzido a prisão da Polícia Federal em Curitiba, gostaria de dizer, do alto de minha modéstia, que sinto vergonha por esse comportamento.

Falando dos argumentos de conveniência, antes de chegar às teses de consciência. A experiência recomenda que se evite bater em quem está por baixo, depois de muita badalação no tempo em que se encontrava por cima. Não é só política. É pudor – que ajuda a preservar a própria memória.

Até pela biografia, como um dos líderes da resistência à ditadura, que organizou grandes protestos estudantis, articulou a luta pela anistia e as diretas-já, Dirceu tem credibilidade para ser ouvido, para se explicar e para se defender, se for o caso.

Queira-se ou não, é parte da história da nossa democracia. Se hoje podemos usufruir direitos e liberdades, isso se deve a pessoas que tiveram atitudes definidas e claras, no momento correto. Dirceu foi uma delas.

É claro que o passado não garante anistia prévia a ninguém. Mas ajuda a pensar.

Pensei que já tínhamos vivido – nós, que perdemos em 64, fomos derrotados de novo em dezembro de 68, que enfrentamos muitos momentos cruéis e assustadores – tempo suficiente para ter aprendido de uma vez por todas algumas lições essenciais. Por exemplo:

-- Que não se pode transigir com valores e garantias democráticas;

-- Que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário, o que só é possível com um amplo direito de defesa e o processo contraditório;

-- Que o casamento entre meios de comunicação (“Basta!” “Fora!”, quem pode esquecer dessas manchetes?) e os tribunais costuma produzir situações degradantes, como lembram as velhas Comissões Gerais de Investigação do pós-64;

Vivemos um período tão especial – não tão raro assim em nossa história, vamos admitir -- em que as pessoas não são presas porque foram julgadas ou condenadas. Elas são presas para confessar e delatar, o que os responsáveis da Lava Jato costumam negar mas a matemática trabalha contra seu argumento: das 18 delações do caso, só uma foi feita com o acusado em liberdade. Um procurador, Mauro Pastana, autor de pareceres favoráveis à Lava Jato, admitiu com todas as letras que as prisões preventivas podem estimular os acusados a “colaborar.”

Isso permite entender que a Operação não segue a lógica das investigações criminais, que tem um crime a investigar, um responsável a julgar e punir, se for caso. Mas temos uma lógica de guerra, onde o alvo é visto como inimigo.

Onde nossos intelectuais resolveram esconder Norberto Bobbio, pai da unidade entre justiça e da democracia, que ajudou a afastar a esquerda do totalitarismo da era stalinista? Não foi ele, citação obrigatória dos anos 1980 e 1990, que ajudou a explicar que a democracia era um valor universal, para nós e para eles – sejam quem forem o “nós” e o “eles”?

Será que todos se esqueceram de Emile Zola, forçado a exilar-se em Londres para ficar longe dos fanáticos do ódio manipulado pela imprensa reacionária da França do final do século XIX?

Dirceu tem inúmeros defeitos mas não é por causa deles que se tornou um alvo político do conservadorismo brasileiro, que só deixou de persegui-lo com ataques brutais no período em que se tornou importante demais para ser alvejado sem receio de retaliação.

Entre os diversos políticos brasileiros, Dirceu cometeu erros inúmeros, exibe defeitos imensos, mas é um dos poucos que, em sua estatura, não foi cooptado. Conservou uma visão própria do mundo e das coisas da política – e isso incomoda demais. Por isso não basta que seja derrotado. Deve ser esmagado. Repetindo a sentença do tribunal de uma rainha louca contra um revolucionário que não vou citar aqui para não inspirar comparações indevidas, seu corpo deve ser esquartejado e a terra, salgada. Não é de envergonhar?

Copiamos o absolutismo português, por outros meios.

A última derrota de Dirceu foi ter negado o pedido de acesso integral às denúncias feitas contra ele. O argumento é que isso poderia atrapalhar o curso das investigações. É um direito básico, que faz parte da construção da democracia e da invenção dos direitos humanos, ocorrida naquele período em que homens e mulheres deixaram de ir a praça pública aplaudir esquartejamentos, torturas e mortes na forca.

Hoje se prende sem condenação. Houve uma época em que se prendia sem acusação.

Evoluímos. Mas também regredimos.

Que o juiz Sérgio Moro tenha argumentos para impor essa situação e até convença os tribunais superiores de seus motivos, como ocorreu com o ministro do STF Teori Zavaski, eu até compreendo – embora me reserve o direito de considerar um absurdo.

Quando intelectuais se submetem a esse meio conhecimento, a essa verdade censurada, e mesmo assim se dispõe a condenar, assumem uma condição inaceitável: em vez de viver das próprias ideias, permitem-se pensar com o cérebro dos outros?

É desse modo que passamos a torcer pelo fim da divisão entre trabalho manual e intelectual?

Não, meus amigos. A realidade é ainda mais feia. O universo político está em mudança e não faltam mentes de olho nas vagas disponíveis na nova ordem. Aquelas que, a partir de 2003, cortejavam a ordem da qual Dirceu fazia parte.

Minha opinião é que Dirceu deveria ser deixado em paz. Quase septuagenário, com contas a apresentar aos brasileiros, e explicações a dar. Tem um ajuste de contas a fazer com sua própria história.

Dirceu perdeu os direitos políticos em 2005, no início da AP 470. O relator que conduziu a cassação de seu mandato acaba de ser acusado de receber R$ 150 000 para abafar uma das diversas CPIs da Petrobras – coisa que ele desmente, como Dirceu sempre desmentiu o que se disse sobre ele.

Como tantos antes e depois dele, no Brasil e no mundo, Dirceu passou a oferecer serviços que políticos, advogados e ministros das altas esferas possuem de melhor: contatos, conhecimentos, ideias que encurtam distâncias e vencem dificuldades. Não vou julgar essa opção aqui e agora. Cidadãos que fazem isso, em geral, devem renunciar à atividade política.

Na pátria dos lobistas registrados, o próprio Barack Obama foi obrigado a desconvidar um senador democrata, competente e articulado, Tom Dashle, que, fora do Congresso, passou a trabalhar para um escritório de empresas de saúde.

A denúncia que levou Dirceu à cadeia é que sua atividade é uma farsa e que ele só estava armando esquemas de corrupção e enriquecimento. Cabe investigar, apurar, acusar e esclarecer. Os fatos concretos são necessários para saber quem está mentindo.

De preferência, em liberdade.

Qualquer pessoa que já foi obrigada a dar explicações para representantes da Lei e da Ordem – estou falando daqueles que têm gravata – sabe a diferença. É isso que separa a civilização da barbárie.

Apesar de tudo, um advogado que esteve com Dirceu trouxe boas notícias sobre o prisoneiro: "o humor dele está melhor do que o meu."

Por Paulo Moreira Leite no Brasil 247

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Contra o totalitarismo financeiro, ou a Europa muda ou morre


Nunca vimos um credor, por mais estúpido que fosse, tentar matar o próprio devedor, como o FMI faz com os gregos.









"A economia que mata", a que se refere o Papa, é o que estamos assistindo ao vivo, direto de Bruxelas. É um espetáculo humilhante. Não corta pescoços, não cheira a sangue, a pólvora ou carne queimada. Atua em salas refrigeradas e corredores acarpetados, mas a ferocidade sem pudor é a mesma de uma guerra. A pior das guerras: aquela declarada pelos ricos da globalização aos pobres dos países mais vulneráveis. Eis em que consiste a influente metafísica dos dirigentes da União Europeia, do BCE e, sobretudo, do FMI: demonstrar, de todas as formas possíveis, que quem está embaixo nunca poderá ser ouvido a respeito das pseudo-receitas fadadas ao fracasso. 

As "negociações sobre a Grécia" das últimas semanas já tinham passado dos limites de uma confrontação diplomática, certamente difícil, mas normal, e se transformado num teste de resistência. Uma espécie de julgamento divino ao contrário. As etapas anteriores já haviam se desviado do que se entende tradicionalmente por "democracia ocidental", com a insistência dos líderes da União Europeia em substituir o caráter totalmente político do voto grego e do mandato popular confiado a este governo, pela lógica contábil dos lucros e das perdas financeiras, como se não se tratasse de Estados, mas de empresas ou corporações.

Apocalipse cultural

Jürgen Habermas tem razão em denunciar a transformação – por si só devastadora – de um confronto entre representantes do povo, no âmbito de um verdadeiro exercício de cidadania, em um confronto entre credores e devedores, num contexto quase privado de um processo de falência. Descreditar Alexis Tsipras e Yannis Varoufakis enquanto interlocutores políticos para transformá-los em "devedores" já era, por si só, um sinal de apocalipse cultural, por colocá-los numa situação de desigualdade diante de "credores" todo-poderosos. Depois, no entanto, a situação mudou de rumo. Christine Lagarde acelerou o processo de desmascaramento. Não se trata mais apenas de espoliar o outro, mas de humilhá-lo. Não se trata mais só da dialética, inteiramente econômica, "credor- devedor", mas de uma muito mais dramática, "amigo-inimigo", que marca a volta da política em sua forma mais essencial e mais dura: a política do polemos (guerra em grego antigo).

De fato, nunca tínhamos visto um credor, por mais estúpido que fosse, tentar matar o próprio devedor, como o FMI está fazendo com os gregos. Algo mais parece estar em jogo: a construção científica do "inimigo" e a vontade de um sacrifício exemplar

Uma fogueira como nos tempos da Inquisição, de modo a que ninguém mais fique tentado pelo charme da heresia.

Leia com atenção o último documento com as propostas gregas e as correções em vermelho do grupo de Bruxelas, publicado (com uma ponta de sadismo) pelo Wall Street Journal: é um exemplo burocrático de pedagogia da desumanidade.

A caneta vermelha fez estragos ao longo do texto, procurando, com uma precisão maníaca, qualquer referência aos "mais necessitados" (most in the need) para realçá-la, com um traço. A caneta negou a possibilidade de manter uma TVA (imposto sobre consumo) mais baixa (13%) para os produtos alimentares básicos, e a 6% para os medicamentos (!). Assim como, no extremo oposto, riscou qualquer possibilidade de tributar um pouco mais os lucros mais altos (acima de 500 mil euros), em homenagem à teoria sinistra do trickle down, segundo a qual enriquecer os mais ricos beneficia a todos!

A caneta, finalmente, manchou de vermelho o parágrafo sobre as aposentadorias, impondo uma pressão maior, e imediata, sobre uma categoria já massacrada pelos Memorandos de 2010 e 2012.

Tudo isso baseado na falsa ideia, repetida ad nauseam, sobre a idade "escandalosamente baixa" (53, 57 anos...) de aposentadoria para os gregos. Para justificar a gravidade dessas exigências, o diretor de comunicação da Troika, Gerry Rice, numa conferência de imprensa, chegou ao ponto de declarar que "a aposentadoria média, na Grécia, é como na Alemanha, mas se para de trabalhar seis anos antes...".

Uma (dupla) mentira inconsciente, desmentida pelas estatísticas oficiais da União Europeia: a Eurostat aponta, desde 2005, que a idade média de aposentadoria entre os cidadãos gregos é de 61,7 anos (quase um ano a mais que a média europeia, na Alemanha sendo de 61,3 e na Itália, 59,7).

A Eurostat afirma ainda que, em 2012, a despesa grega per capita para o pagamento das aposentadorias representava aproximadamente metade da de países como Áustria e França, e um quarto em comparação com a Alemanha. 

Um país que deu, portanto, tudo o que podia, e muito mais. Por que, então, continuar a pressioná-lo?

Ambrose Evans-Pritchard – um comentarista conservador, mas não cego pelo ódio – escreveu no Telegraph que "os credores querem ver esses rebeldes Klepht (os gregos que, no século 16, se opuseram ao domínio otomano) enforcados nas colunas do Parthenon, como bandidos", pois não suportam ser desmentidos por testemunhas de seu próprio fracasso. Ele acrescentou que "se quisermos marcar o momento em que a ordem liberal perdeu sua autoridade no Atlântico – e o momento em que o projeto europeu deixou de ser uma força histórica capaz de criar motivação – este momento poderia ser este que vivemos hoje". É difícil discordar dele.

Não podemos esconder que o que está em jogo na Europa hoje, no que diz respeito à Grécia e aos imigrantes, marca uma mudança de cenário para todos nós.

Será cada vez mais difícil, a partir de agora, nutrir qualquer orgulho de ser europeu. O que prevalecerá, se "permanecermos humanos", será a vergonha. 

Uma ideologia exclusiva 

Se, como todos esperamos, Tsipras e Varoufakis conseguirem salvar a pele do seu próprio país, recusando o que equivale a um golpe de estado financeiro, isto será de extraordinária importância para todos nós.

Mas, de qualquer maneira, o que restará é a imagem indelével de um poder e um paradigma com o qual será cada vez mais difícil conviver. Porque está doente de totalitarismo financeiro que não tolera qualquer opinião divergente, sob o risco de arruinar a Europa, pois está claro que com estas lideranças, com esta ideologia exclusiva, e com essas instituições cada vez mais fechadas à democracia, a Europa não pode sobreviver.

Uma coisa está bem clara, agora mais do que nunca: ou a Europa muda, ou morre.

A Grécia não pode se salvar sozinha. Ela pode suportar outro round, mas se outros povos e outros governos não ficarem do seu lado, a esperança que despertou morrerá sufocada.

Por isso as eleições do fim do ano, na Espanha e em Portugal, são tão importantes.

Por isso é tão importante o processo de reconstrução de uma esquerda italiana que esteja à altura destes desafios; é preciso superar as fragmentações e os particularismos, as incertezas e as distinções para construir, rapidamente, uma verdadeira casa comum, grande e confiável.

Marco Revelli - Libération

Tradução de Clarisse Meireles

Leia mais na Carta Maior 

domingo, 14 de junho de 2015

Contra o capitalismo global, a "ideia comunista"


Filósofos como Alain Badiou, Slavoj Zizek e Daniel Bensaid veem no comunismo o único horizonte contra a predação e a privatização do mundo.







Para alguns, defender o comunismo hoje é um anacronismo. 

Alinhar-se a Karl Marx mesmo na civilizada França do século XXI pode ser arriscado. O filósofo Alain Badiou foi alvo de críticas que o viam como um "perigoso revolucionário" e até mesmo "defensor do regime de Terror", aquele que tomou conta da Revolução francesa e do comunismo stalinista. Seus detratores eram alguns dos chamados "novos filósofos", surgirdos na década de 70, que com o passar do tempo se tornaram anticomunistas intransigentes. 

"O capitalismo global humanizado não pode ser o horizonte final da esquerda”, se insurge o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, para quem é preciso reabilitar a “ideia comunista”, não como algo que já fracassou mas como um universalismo a ser construído.

"Estou convencido que numerosos problemas como os ecológicos, biogenéticos e novas formas de apartheid não podem ser resolvidos pelo capitalismo global", esclarece Zizek, que organizou com Alain Badiou em 2009, em Londres, um colóquio chamado On the idea of communism, que se repetiu em Berlim, em 2010.

O comunismo, o futuro do Homem
Para defender Alain Badiou dos ataques dos "novos filósofos" Zizek e Fabien Barby escreveram, em março de 2010, um manifesto ao qual se juntaram centenas de filósofos e intelectuais do mundo inteiro. O texto do manifesto dizia claramente: "nós não renunciaremos jamais à ideia do comunismo". 

E continuava: "Por mais problemática que seja essa ideia, por mais nova que pareça sua forma de se tornar realidade, por mais críticos que sejamos sobre a história do comunismo no século passado, por mais diferentes que sejam nossas propostas, uma coisa é certa : um comunismo a ser reinventado, de um novo gênero ainda indefinido, é o único futuro do Homem. Porque esta é a eterna e única verdade política. A única justiça que a razão humana pode conceber de forma sadia". 

O manifesto concluía: "O tempo não é mais, queiram ou não, dos fracos, pretensiosos e arrivistas ’novos filósofos’ mas dos filósofos da renovação". 

Filósofos contemporâneos como Etienne Balibar, a exemplo de Badiou e Zizek, acham que Marx deve ser o contraponto do capitalismo atual. A mesma coisa pensava o filósofo Daniel Bensaïd, morto em 2010, em Paris.

O que os une é uma certeza: Karl Marx continua a ser um filósofo fundamental. Eles se debruçaram sobre os escritos de Marx e defenderam em livros e conferências a pertinência de seu pensamento e da idéia do comunismo, que Badiou chama de "hipótese comunista". 

Provocativo e dotado de um senso de humor inabalável, Zizek declarou a um jornal francês: "Continuo comunista porque todo mundo pode ser socialista, até mesmo Bill Gates". 

Badiou e Zizek são os dois filósofos europeus mais conhecidos, traduzidos e comentados no mundo. Para Badiou, como para Zizek, "o desatre obscuro" do stalinismo (como o denomina Alain Badiou) e o fracasso do “socialismo real” não invalidam o horizonte de emancipação radical que é a “ideia comunista”, que eles reatualizam em novas formas de ação. Ambos afirmam um universalismo concreto, um universalismo de combate.

Alain Badiou apresentou seu amigo Zizek em 2008 e novamente este ano em seu seminário como alguém que vem de um horizonte filosófico diferente. "O pensamento de Zizek é fruto da tensão entre o idealismo alemão (Kant, Schelling, Hegel) e Lacan. Sua dialética é mais a da negação, numa elaboração que se faz do lado de Hegel e do real, num conceito que ele encontra em Lacan".

Quanto a seu próprio horizonte filosófico, Badiou diz que ele se constituiu na tensão dialética entre a ideia e a liberdade, entre Platão e Sartre tentando uma resposta à pergunta, "como a soberania da ideia, da verdade, pode ser compatível com a liberdade?"

Renovar a vocação igualitária do comunismo
Citado por Etienne Balibar, o filósofo Louis Althusser, seu mestre, dizia que o comunismo estava presente no meio de nós, imperceptível, invisível, nos interstícios da sociedade capitalista, em lugares onde os homens se associam em atividades sem fins lucrativos. 

De passagem por Paris este mês de junho, Zizek foi convidado a falar no seminário que Alain Badiou dá na École Normale Supérieure de Paris, que frequento há alguns anos. Ele estava na capital francesa para o lançamento de seu livro Menos que nada - Hegel e a sombra do materialismo dialético, prefaciado por Badiou, que o considera "um dos mais importantes livros de filosofia lançado nos últimos anos".

Em um livro anterior, Primeiro como tragédia, depois como farsa, Zizek voltava a Hegel, que considerava que a história se repete necessariamente. Karl Marx observou: "uma vez como tragédia e na vez seguinte como farsa". Ao que Herbert Marcuse acrescentou: "a farsa pode ser mais terrível que a tragédia que ela repete". Considerado por muitos como o "filósofo mais perigoso do Ocidente", o agitado Zizek tem como ambição defender a “ideia comunista”, recomeçar do início, "o que significa não reproduzir o que foi um fracasso mas diante dele renovar a vocação igualitária original do comunismo".

Dito isto, é evidente que ele não vê solução no mercado. 

“Se há uma lição a tirar do fracasso da União Soviética é que o dirigismo da economia nacionalista só funciona numa certa etapa de desenvolvimento industrial tradicional. Não tenho uma fórmula clara. Mas a solução que entrevejo é a de um Estado sustentado por um movimento popular, por uma mobilização extraparlamentar”, declarou ele em 2010, em conferência parisiense. Ele citava como digna de grande interesse a experiência de Evo Morales na Bolívia. Para Zizek, Morales conseguiu uma poderosa mobilização da maioria silenciosa indígena. Assim, ele é sustentado por uma mobilização permanente da maioria.

Ainda não havia o Podemos, na Espanha, nem o Syriza, na Grécia, que empolgam o filósofo hoje.

Segundo Zizek, o stalinismo foi algo muito mais enigmático que o nazismo. Por isso ele concorda com Badiou que chamou o período stalinista de "desastre obscuro". Para Zizek, os dois totalitarismos não podem ser comparados por múltiplas razões que explica.

Na conferência que faria no mês em que morreu, em Paris, em janeiro de 2010, Daniel Bensaïd, filósofo e militante trotskista escreveu um longo texto no qual reafirmava sua convicção que o comunismo é único horizonte contra "a predação e a privatização do mundo". 

Ele escreveu: "De todas as formas de nomear 'o outro', o que está em face do obsceno capitalismo, a palavra comunismo é aquela que conserva maior sentido histórico. É ela que melhor evoca o comum que se dá na partilha e na igualdade, a partilha do poder, a solidariedade que se opõe ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão de um campo de gratuidade dos serviços e bens de primeira necessidade, contra a predação generalizada e a privatização do mundo". 


Por Leneide Duarte - Plon, de Paris na Carta Maior 

Créditos da foto: esquerda.net

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O caos ideológico


A grande confusão ideológica do país é causada pelas próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda.



Em meio à crise política e à retração econômica brasileira, o jantar do dia 12 de maio da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos no Waldorf Astoria de Nova York, reunindo banqueiros, empresários e a políticos da alta cúpula do PSDB, em torno dos ex-presidentes Bill Clinton e Fernando H. Cardoso foi um clarão no meio da confusão ideológica dominante. Em termos estritamente antropológicos, representou uma espécie de pajelança tribal de reafirmação de velhas convicções e alianças que estiveram na origem do próprio partido socialdemocrata brasileiro. Mas do ponto de vista mais amplo, pode se tornar uma baliza de referência para a clarificação e remontagem do mapa político brasileiro.

Afinal, este grupo liderado pelo ex-presidente FHC foi o único que esteve presente e ocupou um lugar de destaque nas reuniões formais e informais que cercaram a posse de Bill Clinton, em 1993, em Washington. Naquele momento foi sacramentada a aliança do PSDB com a facção democrata e o governo liderado pela família Clinton. Uma aliança que se manteve durante os dois mandatos de Clinton e FHC, assegurando o apoio do Brasil à criação da Alca e garantindo a ajuda financeira americana que salvou o governo FHC da falência.


Estes dois grupos estiveram juntos na formulação e sustentação das reformas e políticas do Consenso de Washington e voltaram a estar juntos nas reuniões da “Terceira Via”, criada por Tony Blair e Bill Clinton, em 2008, reencontrando-se agora de novo, na véspera da candidatura presidencial de Hillary Clinton.


Durante todo este tempo os social-democratas brasileiros mantiveram sua defesa incondicional do alinhamento estratégico do Brasil, ao lado dos EUA, dentro e fora da América Latina; sua opção irrestrita pelo livre comércio e pela abertura dos mercados locais; pela redução do papel do Estado na economia; pela defesa da centralidade do capital privado no comando do desenvolvimento brasileiro; e pela aplicação irrestrita das políticas econômicas ortodoxas.


Estas posições orientaram a política interna e a estratégia internacional dos dois governos do PSDB, na década de 90, e seguem orientando a posição atual do PSDB, favorável à reabertura de negociações para criação da Alca; à mudança do regime de exploração do “pré-sal”; ao fim da exigência de conteúdo nacional nos mercados de serviços e insumos básicos da Petrobras e das grandes construtoras brasileiras. Isto pode não ser “um projeto de país”, mas com certeza é um programa de governo rigorosamente liberal, que só coincide de forma circunstancial e oportunista com as teses neoconservadoras defendidas hoje por movimentos religiosos de forte conteúdo fundamentalista.


A novidade destes movimentos no cenário político brasileiro atual surpreende o observador, mas suas teses sobre família, sexo, religião etc não são originais e sua liderança carece da capacidade de formular e propor um projeto hegemônico para a sociedade brasileira. O mesmo pode ser dito com relação ao poder real das recentes mobilizações de rua e de redes sociais, que fazem muito barulho, mas também não conseguem dar uma formulação intelectual e ideológica consistente às suas próprias iras e reivindicações.


Deste ponto de vista, parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda. Não é fácil identificar o denominador comum que une todas estas forças, mas não há dúvida que seu projeto econômico aponta muito mais para o ideal de um “capitalismo organizado” sob liderança estatal, do que para o modelo anglo-saxônico do “capitalismo desregulado”; para uma política agressiva de redistribuição de renda e prestação gratuita de serviços universais, do que para uma política social de tipo seletiva e assistencialista; e finalmente, para uma estratégia internacional de liderança ativa dentro da América Latina, e de uma aliança multipolar com as potências emergentes sem descartar as velhas potências do sistema, muito mais do que para um alinhamento focado em algum país ou bloco ideológico de países.


Se assim é, como explicar à opinião pública mais ou menos ilustrada que um governo progressista deste tipo coloque no comando de sua política econômica um tecnocrata que não tem apenas convicções e competências ortodoxas, mas que seja também um ideólogo neoliberal que defende abertamente em todos os foros uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo para o país absolutamente idêntica a que é defendida pelo grupo que participou do jantar no Waldorf Astoria, no dia 12 de maio.


E como entender um ministro de Energia que defende em reuniões internacionais o fim da política de “conteúdo local” e do “regime de partilha” do pré-sal, duas políticas que são uma marca dos últimos 13 anos de governo e uma diferença fundamental com a posição defendida pelos mesmos comensais de Nova York.


Por fim, para levar a confusão ao limite do caos, como explicar que o ministro de Assuntos Estratégicos desse mesmo governo proponha abertamente, pela imprensa, como se fosse um acadêmico de férias, que se faça uma revisão completa da política externa brasileira da última década, com a suspensão do Mercosul, que foi criado e é liderado pelo Brasil, e com a mudança do foco e das prioridades estratégicas do país, que deveria agora alinhar-se com os EUA para enfrentar a ameaça da “ascensão econômica e militar chinesa”.


Tudo isto dito de forma tranquila, exatamente uma semana antes da visita oficial do primeiro-ministro chinês ao Brasil, que já havia sido anunciada junto com um pacote de projetos e de recursos para levar a frente uma estratégia de longo prazo que passa – entre outras coisas – pela construção de uma ferrovia transoceânica capaz de dar ao Brasil, finalmente, um acesso direto ao Pacífico, com repercussões óbvias no campo da geopolítica e geoeconomia continental. Além disto, este “grande estratego” do governo fez sua proposta um mês antes da reunião do Brics, na Rússia, em que será criado o banco de investimento conjunto do grupo, sob a óbvia liderança econômica da China. Uma trapalhada pior do que esta, só se fosse proposta também a internacionalização da Amazônia.


Talvez por isto tantos humanistas sonhem hoje com o aparecimento de uma nova utopia de longo prazo, como as que moveram os revolucionários e os grandes reformadores dos séculos XIX e XX. Mas o mais provável é que estas utopias não voltem mais e que o futuro tenha que ser construído a partir do que está aí, a partir da sociedade e das ideias que existem, com imaginação, criatividade e uma imensa paixão pelo futuro do país.




José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro “História, estratégia e desenvolvimento” (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Frente de esquerda para quê?



Não é a falta de direção que acomete a ala progressista brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave

Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado



Se fosse o caso de fornecer uma analogia histórica para a situação atual do Brasil, talvez o melhor a fazer seria voltar os olhos para a Argentina dos anos 1970. De certa forma, não há nada mais parecido com o atual governo Dilma do que a Argentina de Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado.

Uma presidenta refém de seus operadores políticos, impotente diante da dissolução do acordo peronista entre setores da esquerda e setores conservadores em torno da figura de seu finado marido, Juan Domingo Perón, Isabelita foi a figura mais bem-acabada do esgotamento do ciclo de acordos, avanços e paralisias que marcou o peronismo. Ao se deixar guiar pelos setores mais conservadores do peronismo, Isabelita parecia uma morta-viva, a encarnação de um tempo que já acabara, mas ninguém sabia como terminar.

Agora, imaginem que estamos na Argentina dos anos 1970 e Perón não morreu. Como um fantasma, ele volta para tentar organizar a oposição contra o governo que ele mesmo elegeu, federando as vozes dos descontentes com o governo criado por ele mesmo e para o qual indicou vários ministros. Não, algo dessa natureza não poderia acontecer na Argentina. Algo assim só pode ocorrer no Brasil. Pois não é isso o que estamos vendo com um Lula reconvertido a arauto da “frente de esquerda” juntamente com o resto do que ainda tem capacidade de formulação no PT? O mesmo PT que, em um dia, vai à televisão para afirmar seu compromisso com a defesa dos direitos trabalhistas para, no dia seguinte (vejam, literalmente no dia seguinte) votar em peso a favor de um pacote de medidas que visam “ajustar” a economia não exatamente taxando lucros bancários exorbitantes, mas diminuindo os mesmos direitos trabalhistas que defendera 24 horas antes.

Nesse contexto, o que pode ser uma frente de esquerda a não ser a última capitulação da esquerda brasileira à sua própria impotência? Ou, antes, o reconhecimento tácito de que a esquerda brasileira só pode oferecer o espetáculo deprimente de discursos esquizofrênicos divididos entre o reino das boas intenções e a dureza das decisões no “mundo real”? Acreditar que aqueles que nos levaram ao impasse serão os mesmos capazes de nos tirar de tal situação é simplesmente demonstrar como a esquerda brasileira vive de fixações em um passado que nunca se realizou, que nunca foi efetivamente presente. É mostrar ao País que a esquerda não tem mais nada a oferecer de realmente novo e diferente do que vimos.

Se a esquerda quiser ter alguma razão de existência (pois é disso que se trata), ela deve começar por fazer uma rejeição clara do modelo que foi aplicado no Brasil na última década, seja no campo político, seja no campo econômico. O modelo lulista não chegou a seu esgotamento por questões exteriores, pressão da mídia ou inabilidades de negociação da senhora Dilma. Ele se esgotou por suas contradições internas e quem o criou não é capaz de criar nada de distinto do que foi feito.

Insistiria ainda em como é falsa a ideia de que a esquerda brasileira está de joelhos sem saber o que fazer. Há anos, vários setores progressistas têm alertado para o impasse que agora vivemos. Há anos, várias pautas foram colocadas em circulação, entre elas a revolução tributária que taxe a renda e libere a taxação sobre o consumo, a democracia direta com poder de deliberação, veto e gestão, o combate à especulação imobiliária através de leis que limitem a propriedade de imóveis, a reforma agrária, a diminuição da jornada de trabalho, a autogestão de fábricas e locais de trabalho, o salário máximo, o casamento igualitário, as leis radicais de defesa da ecologia, o fim da política de encarceramento sistemático, a exposição da vida financeira de todos os que ocupam cargos de primeiro e segundo escalão, a punição exemplar da corrupção, o fim do monopólio da representação política para partidos. Não é a falta de direção que acomete a esquerda brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave. 

Leia mais do professor Vladimir Saflate