domingo, 30 de agosto de 2015

CPMF: o sultanato rentista e o GPS político do governo


Dilma ficou sozinha na linha de tiro dos endinheirados. E recuou da CPMF. O governo trata dilemas históricos como se fossem problemas contábeis.



É na crise que a distribuição da riqueza adquire transparência transformadora na vida de uma sociedade.

Esse é o momento vivido hoje pelo Brasil.

Será desastroso não saber enxerga-lo.

Transformar essa transparência em um engajamento político capaz de destravar o Rubicão do desevolvimento, é o desafio que se impõe ao campo progressista nesse momento.

Não há muito tempo a perder.

A marcha desastrosa da recessão evidencia o acirramento da luta de classe dissimulado na chave do ‘ajuste’ fiscal.

O recuo do governo em relação à CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, conhecida como ‘ imposto do cheque’, resume em ponto pequeno toda a nitroglicerina armazenada nessa encruzilhada histórica.

É inútil dar ao extraordinário um tratamento de rotina.

O governo esqueceu de mobilizar a fila do SUS em defesa da CPMF.

Tratou como esparadrapo contábil um conflito de interesses que condensa em ponto pequeno a dimensão distributiva dos impasses que paralisam a nação.

Na estimativa do próprio ministério da Fazenda, a nova CPMF poderia gerar uma arrecadação da ordem de R$ 80 bi.

Portanto, superior à meta anterior do ‘ajuste’ fiscal fracassado, de R$ 66 bi.

O que remete à pergunta óbvia.

Por que não se começou pela CPMF, em janeiro, quando o fôlego político era maior, ampliando o espaço para uma revisão negociada e gradativa do motor do crescimento?

A retomada da CPMF em meio à crispação atual só teria viabilidade precedida de um amplo debate com as forças sociais.

O elevado potencial educativo desse tributo poderia (pode?) gerar o discernimento social indispensável a uma reordenação econômica alternativa ao arrocho.

O recuo desgastante deste sábado evidenciou mais uma vez o erro de encaminhamento que pode ser resumido em uma constataçao: o governo ainda supõe existir uma solução genuinamente econômica para a crise que consome o país.

Não há.

E Brasília estourou o limite de crédito para errar no método.

Há uma chance de consertar o estrago?

Talvez.

Desde que o recuo seja transformado em ofensiva de comunicação com a sociedade e de negociação com seus distintos segmentos.

O que havia de tão especial na CPMF para isso?

A questão tributária condensa uma boa parte dos desafios que imobilizam o país e o Estado brasileiro.

A CPMF reúne de forma ostensiva as duas pontas do que está em jogo.

De um lado, a carência de recursos para um salto de abrangência e qualidade nos serviços essenciais e na infraestrutura.

De outro, a natureza parasitária de um pedaço da elite, que encara o país como um substrato a ser fagocitado, e resiste em assumir responsabilidades compartilhadas.

Sem as quais não existe sociedade, futuro e nem desenvolvimento.

A rejeição metabólica em pagar imposto é um sintoma desse divórcio de quem já montou apartamento Miami e transferiu o saldo para o HSBC suíço...

Vencer a guerra da opinião pública hoje no Brasil passa por fazer as perguntas que o conservadorismo não pode responder sem se autodenunciar.

A pergunta que a CPMF coloca para a sociedade e que o governo não soube explicitar tem a contundência de um despertador de quartel.

Numa intrincada transição de ciclo de desenvolvimento, como a atual, a sociedade deve privilegiar a saúde da população, ou o privilégio fiscal da riqueza financeira?

Curto e grosso: a fila do SUS ou a CPMF?

Macas nos corredores, ou fim do sultanato rentista incrustrado na nação?

Não faltam argumentos a quem quiser promover o discernimento do nosso tempo.

Bancos pagam menos impostos no Brasil que o conjunto dos assalariados.

Aplicações financeiras mantidas por dois anos pagam 15% sem qualquer progressividade.

Lucros e dividendos recebidos por pessoa física gozam de isenção fiscal desde 1996, gentileza concedida pelo governo do PSDB aos endinheirados.

Tem muito mais.

Artimanhas contábeis permitem que um banco lance o pagamento de dividendos dissimulados em despesa de juros sobre o capital próprio.

Não pagam imposto com essa artimanha. E o acionista beneficiado paga só 15%.

O imposto sobre o patrimônio dos ricos contribui com menos de 1% do PIB na composição da receita total do Estado brasileiro.

Estamos falando da vida leve de gente que compõe um circuito pesado.

Aos fatos.

O 15º relatório do BCG, Global Wealth 2015: Winning the Growth Game, aponta que, no ano passado, o Brasil, possuía US$ 1,4 trilhão em riqueza privada, à frente do México (US$ 1,1 trilhão) e Chile (US$ 4 bilhões). ]

Até 2019, ou seja, ao final do governo Dilma –tudo o mais inalterado no sultanato rentista-- estima-se que a fortuna financeira atingirá US$ 2,9 trilhões (maior que o PIB brasileiro do ano passado, US$2,2 trilhões).

Só nas contas dos especiais no país , os private banking daqui –sem contar lá fora-- o total das aplicações no final do semestre passado era de R$ 694 bilhões (dados do insuspeito jornal Valor de 28-08-2015).

Ou seja, mais de dez vezes a economia original prevista pelo arrocho fracassado de Joaquim Levy.

A expectativa dos managers do rentismo é de que essa piscina de Tio Patinhas chegue ao final de dezembro com uma cota entre 12% e 15% superior a atual.

Como?

Sem colocar nem um dedo do pé na atividade produtiva. E gozando dos juros, das benesses, isensões e mimos fiscais sabidos.

As fronteiras do sultanato podem ser ainda maiores.

Os dados considerados referem-se à contabilidade das operações financeiros sabidas e declaradas.

Embora não declarado, é sabido no entanto que o Brasil é proeminente nos rankings de sonegação urbi et orbi.

Um deles, o Tax Justice Network, situa o país como vice campeão mundial, atrás apenas da Rússia, respectivamente com 13,4% e 14,2% do PIB sonegados anualmente aos fundos públicos que financiam o presente e o futuro da sociedade.

Cálculos do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) mostram que só no primeiro semestre de 2015, R$ 320 bilhões teriam sido sonegados no país.

Mais de R$ 1,1 trilhão seria a soma das dívidas tributárias acumuladas.

A maior fatia – R$ 723,3 bilhões – envolve grandes devedores: empresas que juntas representam menos de 1% das pessoas jurídicas registradas no Brasil, diz o Sinprofaz.

Assim por diante.

E com um agravante dramático.

Nem mesmo o que se consegue arrecadar efetivamente é canalizado de fato à redução dos abismos sociais e ao desenvolvimento produtivo.

Filtros de classe se impõem pelo caminho

A dívida pública é o principal deles.

Ela funciona como uma espécie de reforço na regressividade do sistema fiscal brasileiro.

Assemelha-se a um enforcador que subordina o princípio da solidariedade à primazia rentista.

O mecanismo ‘autossustentável’ ganhou seu upgrade com a ascensão da agenda neoliberal que privilegiou o Estado mínimo em todo o mundo.

Em vez de arrecadar, a lógica do mainstrem recomenda isentar os ricos – para que eles se sintam encorajados a investir...

Sem espaço político para taxar o sultanato rentista --como se viu mais uma vez agora, com o cerco em torno da CPMF, o governanante é levado a compensar a anemia tributária com endividamento público.

Toma emprestado e paga juros por aquilo que deveria arrecadar taxando heranças, operações financeiras, dividendos, fortunas, remessas, etc.

A dívida cresce.

Engessa o futuro do desenvolvimento.

Eleva a dependência em relação ao mercado financeiro.

É uma corrida para frente infernal.

Quando a economia desacelera e a receita cai, o pedal trava e o insustentável explode no colo do Estado impondo escolhas difíceis.

Esse é o momento em que se encontra o Brasil.

O imenso piquete de engorda do capital rentista representado pela dívida pública já consome 7,5% do PIB em juros.

Deve bater em 8% até o final do ano, graças a uma Selic generosa de 14,25% -- a taxa de juro mais alta do mundo.

Essa singularidade faz do Brasil uma excrescência financeira.

Um paraíso de bombeamento fiscal de perversidade jamais vista em nenhum outro lugar do planeta.

Nem mesmo em economias reconhecidamente asfixiadas por uma relação dívida pública/PIB duas ou três vezes superior à brasileira, regstra-se deslocamento de riqueza semelhante aos rentistas.

Casos de Espanha, Portugal e Grécia, por exempo, em que o total do juro pago equivale, respectivamente, a 2,5%, 4% e 4,5% do PIB.

O sultanato brasileiro –do qual fazem parte também bancos, empresas etc- reúne pouco mais que 71 mil pessoas, segundo o Ipea.

A renda mensal é superior a 160 salários mínimos.

Essa ínfima parcela de 0,05% da população controla 14% da renda total do país.

E detém quase 23% da riqueza financeira (ações, moedas, aplicações, títulos públicos etc)

Aspas para o jornal Valor de 10-08-2015:

‘As pessoas mais ricas do país, que ganham mensalmente mais de 160 salários mínimos, pagam muito pouco imposto de renda. Os dados divulgados no mês passado pela Receita Federal, em sua página da internet, mostram que esse grupo de cidadãos paga ao leão apenas 6,51% de sua renda total.’

Dito de modo ainda mais claro: o píncaro da riqueza brasileira tem 65,8% do total de seus rendimentos isentos.

É a serviço desse sultanato que o jornalismo isento, o PSDB, os cunhas, mirians, sardenbergs e assemelhados abriram fogo cerrado contra o governo, obrigando-o a retroceder no propósito de taxar esse caudal obsceno com uma aliquota de 0,38% sobre operações financeiras.

É esse o teor explosivamente pedagógico da CPMF.

O recuo avulta seu paradoxo quando se verifica quem de fato foi derrotado do outro lado.

O SUS, o maior sistema público de cobertura universal de saúde do mundo. Um dos maiores trunfos da luta pela construção de uma demcracia social no país.

Criado pela Constituição de 1988, hoje ele atende a 75% da população brasileira.

O médico e ex-ministro da Saúde, Adib Jatene (1929-2014), criador da CPMF, que morreu defendendo o tributo, enchia o peito de orgulho quando falava do SUS: 

‘Anualmente, o SUS interna 11 milhões de pessoas, faz 3 milhões de partos, 400 milhões de consultas. Nós erradicamos a poliomielite, o sarampo, a rubéola. Nós vacinamos mais do que qualquer país do mundo. Temos um programa de combate à Aids que é referência internacional. Fazemos hemodiálise para uma quantidade brutal de pessoas. Cirurgias complexas. Os transplantes de fígado feitos no Hospital Albert Einstein é o SUS que paga. Oncologia, medicamentos que os planos de saúde não cobrem... É um trabalho tão grande, que a população que pode (financeiramente) deveria vir ajudar espontaneamente, e não obrigada por tributos’.

O gigante, porém, soçobra.

Dos quatro mil procedimentos hospitares incluídos hoje na lista do SUS, 1500 estão com tabelas de remuneração gritantemente defasadas.

Consultas de média especialidade, um gargalo histórico do sistema, estão sendo acudidas pelo exitoso programa ‘Mais Médicos’.

Mas o funil dos exames e cirurgias trava a engrenagem e assume contornos de uma bola de neve insustentável.

Um dado resume todos os demais nessa equação: o gasto per capita ano com saúde no Brasil é de U$S 483; na Inglaterra, por exemplo, é de US$ 3 mil.

Que o governo tenha perdido a guerra da CPMF para uma realidade numérica tão exclamativa, que reúne, em uma margem, 0,05 da população detentora de 23% da riqueza financeira, isenta em 65,8% dos rendimentos; e de outro, um sistema de saúde que atende 150 milhões de brasileiros, mas se debate com déficit de recursos a ponto de manter uma defasagem de 90% no valor pago pelo tratamento de uma pneumonia, e ter fechado 15 mil leitos nos últimos cinco anos, é merecedor de reflexão.

Parece evidente que há um problema no GPS político do governo.

Que o leva insistentemente a tratar dilemas históricos como se fossem problemas contábeis.

Dando com o nariz na porta de quem não quer ouvi-lo.

E a negligenciar aqueles que de fato podem ajudá-lo a repactuar os rumos da economia e da nação.

Por Saul Leblon na Carta Maior

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Volta da CPMF merece aplauso




Quem acompanha este espaço sabe que em janeiro de 2011, quando Dilma Rousseff recebeu a faixa presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, escrevi que sua prioridade absoluta deveria ser restaurar a CPMF, o imposto do cheque capaz de assegurar um remédio duradouro para o financiamento da saúde pública.

A notícia de que, em 2015, Dilma Rousseff planeja recuperar uma nova versão do imposto do cheque merece aplauso. Estamos falando de uma garantia prevista no artigo 196 da Constituição, que diz:

"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

A rápida reação negativa de empresários e dos grandes meios de comunicação não deve ser vista como surpresa. Pode mostrar que não se fez um esforço prévio de explicação, negociação e convencimento – o que nunca é bom. Mas convém reconhecer que estamos diante de um conflito – comum em toda democracia – em que as diferenças estão claras há muito tempo.

Em 2007, a FIESP organizou uma campanha milionária para garantir a extinção da CPMF pelo Congresso. Conseguiu evitar a prorrogação ao impedir que o governo conseguisse reunir os últimos quatro votos que faltavam para formar a maioria necessária de dois terços.

Em 2013, quando Dilma criou o Mais Médicos, uma resposta emergencial ao colapso da saúde nos pontos mais pobres do país, montou-se um ambiente de sabotagem geral. Hoje, com todos os seus limites, o programa é um sucesso reconhecido – ainda que a saúde pública, em geral, aguarde imensas melhorias, como nós sabemos.

A reação à restauração da CPMF indica que a proposta pode transformar-se numa luta política relevante – e é bom estar preparado para ela.

Orquestrada pela turma do impostômetro, que expressa os interesses de quem se coloca acima das necessidades e direitos da maioria da população, a crítica à CPMF é socialmente desprezível e vergonhosa como argumento político.

Falando do ponto de vista da verdade tributária. Vivemos num país onde os cidadãos mais pobres estão condenados a arcar com a maior carga tributária. Numa injustiça conhecida, mas convenientemente esquecida, milionários e miseráveis pagam o mesmo imposto quando vão à feira ou entram na loja para adquirir um eletrodoméstico.

Nesta situação, a proposta que alimentou o imposto do cheque representa uma mudança necessária. Cobra uma taxa ínfima sobre a movimentação bancária de cada cidadão. Na prática, quem tem mais paga mais – o que ajuda a entender a estridência do coral de seus adversários.

Basta ler a imprensa especializada para confirmar que a recessão não chegou ao setor de saúde privada – e quem sabe isso nem venha a acontecer, já que vive um período de grande prosperidade.

Isso porque os seres humanos, estes animais chamados de racionais, não tem a menor disposição de colocar a própria vida em risco. Cada centavo que falta à saúde pública acaba sendo substituído por recursos extraídos do bolso de cada família.

O combate ao imposto do cheque é acima de tudo uma luta ideológica, dogmática e sectária, de quem deseja afirmar a superioridade da iniciativa privada mesmo num terreno onde acumula fracassos visíveis.

É um modelo que funciona – mal – nos Estados Unidos, que têm o mais caro e menos eficiente sistema de saúde entre os países com o mesmo grau de desenvolvimento.

Está condenado a funcionar de forma trágica em países com o perfil sócio-econômico do Brasil, onde os planos de saúde vendem aquilo que não podem entregar, até porque exploram um mercado de baixa renda disponível – e ocupam os primeiros lugares na lista de queixas de consumidores.

A ideia de partilhar o saldo da nova CPMF com estados e municípios pode ser politicamente engenhosa. A maioria dos governos estaduais e prefeituras encontra-se com o caixa quebrado, sem perspectiva de recuperação a curto prazo. O imposto do cheque pode estimular governadores e prefeitos a trabalhar o Congresso pela sua aprovação.

Também é necessário assegurar que os novos recursos -- a entrar em vigor no ano que vem -- estarão reservados, em sua maior parte, para reforçar o caixa da saúde pública e não para sustentar um orçamento cada vez mais empenhado a pagar taxas de juros altíssimas.

Paulo Moreira Leite, via 247

sábado, 8 de agosto de 2015

Dirceu deveria ser deixado em paz




Aos intelectuais, jornalistas e celebridades acadêmicas que têm se dedicado, nos últimos dias, a manifestar a decepção repentina com José Dirceu depois que ele foi conduzido a prisão da Polícia Federal em Curitiba, gostaria de dizer, do alto de minha modéstia, que sinto vergonha por esse comportamento.

Falando dos argumentos de conveniência, antes de chegar às teses de consciência. A experiência recomenda que se evite bater em quem está por baixo, depois de muita badalação no tempo em que se encontrava por cima. Não é só política. É pudor – que ajuda a preservar a própria memória.

Até pela biografia, como um dos líderes da resistência à ditadura, que organizou grandes protestos estudantis, articulou a luta pela anistia e as diretas-já, Dirceu tem credibilidade para ser ouvido, para se explicar e para se defender, se for o caso.

Queira-se ou não, é parte da história da nossa democracia. Se hoje podemos usufruir direitos e liberdades, isso se deve a pessoas que tiveram atitudes definidas e claras, no momento correto. Dirceu foi uma delas.

É claro que o passado não garante anistia prévia a ninguém. Mas ajuda a pensar.

Pensei que já tínhamos vivido – nós, que perdemos em 64, fomos derrotados de novo em dezembro de 68, que enfrentamos muitos momentos cruéis e assustadores – tempo suficiente para ter aprendido de uma vez por todas algumas lições essenciais. Por exemplo:

-- Que não se pode transigir com valores e garantias democráticas;

-- Que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário, o que só é possível com um amplo direito de defesa e o processo contraditório;

-- Que o casamento entre meios de comunicação (“Basta!” “Fora!”, quem pode esquecer dessas manchetes?) e os tribunais costuma produzir situações degradantes, como lembram as velhas Comissões Gerais de Investigação do pós-64;

Vivemos um período tão especial – não tão raro assim em nossa história, vamos admitir -- em que as pessoas não são presas porque foram julgadas ou condenadas. Elas são presas para confessar e delatar, o que os responsáveis da Lava Jato costumam negar mas a matemática trabalha contra seu argumento: das 18 delações do caso, só uma foi feita com o acusado em liberdade. Um procurador, Mauro Pastana, autor de pareceres favoráveis à Lava Jato, admitiu com todas as letras que as prisões preventivas podem estimular os acusados a “colaborar.”

Isso permite entender que a Operação não segue a lógica das investigações criminais, que tem um crime a investigar, um responsável a julgar e punir, se for caso. Mas temos uma lógica de guerra, onde o alvo é visto como inimigo.

Onde nossos intelectuais resolveram esconder Norberto Bobbio, pai da unidade entre justiça e da democracia, que ajudou a afastar a esquerda do totalitarismo da era stalinista? Não foi ele, citação obrigatória dos anos 1980 e 1990, que ajudou a explicar que a democracia era um valor universal, para nós e para eles – sejam quem forem o “nós” e o “eles”?

Será que todos se esqueceram de Emile Zola, forçado a exilar-se em Londres para ficar longe dos fanáticos do ódio manipulado pela imprensa reacionária da França do final do século XIX?

Dirceu tem inúmeros defeitos mas não é por causa deles que se tornou um alvo político do conservadorismo brasileiro, que só deixou de persegui-lo com ataques brutais no período em que se tornou importante demais para ser alvejado sem receio de retaliação.

Entre os diversos políticos brasileiros, Dirceu cometeu erros inúmeros, exibe defeitos imensos, mas é um dos poucos que, em sua estatura, não foi cooptado. Conservou uma visão própria do mundo e das coisas da política – e isso incomoda demais. Por isso não basta que seja derrotado. Deve ser esmagado. Repetindo a sentença do tribunal de uma rainha louca contra um revolucionário que não vou citar aqui para não inspirar comparações indevidas, seu corpo deve ser esquartejado e a terra, salgada. Não é de envergonhar?

Copiamos o absolutismo português, por outros meios.

A última derrota de Dirceu foi ter negado o pedido de acesso integral às denúncias feitas contra ele. O argumento é que isso poderia atrapalhar o curso das investigações. É um direito básico, que faz parte da construção da democracia e da invenção dos direitos humanos, ocorrida naquele período em que homens e mulheres deixaram de ir a praça pública aplaudir esquartejamentos, torturas e mortes na forca.

Hoje se prende sem condenação. Houve uma época em que se prendia sem acusação.

Evoluímos. Mas também regredimos.

Que o juiz Sérgio Moro tenha argumentos para impor essa situação e até convença os tribunais superiores de seus motivos, como ocorreu com o ministro do STF Teori Zavaski, eu até compreendo – embora me reserve o direito de considerar um absurdo.

Quando intelectuais se submetem a esse meio conhecimento, a essa verdade censurada, e mesmo assim se dispõe a condenar, assumem uma condição inaceitável: em vez de viver das próprias ideias, permitem-se pensar com o cérebro dos outros?

É desse modo que passamos a torcer pelo fim da divisão entre trabalho manual e intelectual?

Não, meus amigos. A realidade é ainda mais feia. O universo político está em mudança e não faltam mentes de olho nas vagas disponíveis na nova ordem. Aquelas que, a partir de 2003, cortejavam a ordem da qual Dirceu fazia parte.

Minha opinião é que Dirceu deveria ser deixado em paz. Quase septuagenário, com contas a apresentar aos brasileiros, e explicações a dar. Tem um ajuste de contas a fazer com sua própria história.

Dirceu perdeu os direitos políticos em 2005, no início da AP 470. O relator que conduziu a cassação de seu mandato acaba de ser acusado de receber R$ 150 000 para abafar uma das diversas CPIs da Petrobras – coisa que ele desmente, como Dirceu sempre desmentiu o que se disse sobre ele.

Como tantos antes e depois dele, no Brasil e no mundo, Dirceu passou a oferecer serviços que políticos, advogados e ministros das altas esferas possuem de melhor: contatos, conhecimentos, ideias que encurtam distâncias e vencem dificuldades. Não vou julgar essa opção aqui e agora. Cidadãos que fazem isso, em geral, devem renunciar à atividade política.

Na pátria dos lobistas registrados, o próprio Barack Obama foi obrigado a desconvidar um senador democrata, competente e articulado, Tom Dashle, que, fora do Congresso, passou a trabalhar para um escritório de empresas de saúde.

A denúncia que levou Dirceu à cadeia é que sua atividade é uma farsa e que ele só estava armando esquemas de corrupção e enriquecimento. Cabe investigar, apurar, acusar e esclarecer. Os fatos concretos são necessários para saber quem está mentindo.

De preferência, em liberdade.

Qualquer pessoa que já foi obrigada a dar explicações para representantes da Lei e da Ordem – estou falando daqueles que têm gravata – sabe a diferença. É isso que separa a civilização da barbárie.

Apesar de tudo, um advogado que esteve com Dirceu trouxe boas notícias sobre o prisoneiro: "o humor dele está melhor do que o meu."

Por Paulo Moreira Leite no Brasil 247