terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A hipocrisia dos “gênios” do Real








Comemoram-se hoje os 20 anos do Plano Real.

Claro que ninguém vai deixar de reconhecer que a inflação monetária baixar foi algo bom para a economia e para a vida cotidiana brasileira.

Mas existe uma espécie de cinismo nacional que atribui o sucesso do real à “genialidade” da equipe econômica tucana que, desde o final do Governo Itamar, o implementou, como se fossem os inventores da roda.

No início dos anos 90, embora a inflação brasileira já estivesse descontrolada por uma série do abalos em dose para matar elefante – fim do regime militar, Plano Cruzado, Bresser, Verão, Collor… – não era raro em países do 3° Mundo processos inflacionários intensos. Com a crise da União Soviética, o mesmo passou a acontecer nos países do Leste Europeu.

Taxas de inflação de dois dígitos não eram nenhuma raridade no mundo e países como o México, a Turquia, Argentina, Polônia e outros beliscaram os três dígitos. Israel, a do meio milhar. Nós, a casa do milhar.

A globalização financeira não podia, simplesmente, conviver com moedas tão erodíveis e, portanto, com tanta insegurança ao capital que, ao entrar nestes países, de uma forma ou de outra convertia-se em moeda local. Por mais que as taxas de câmbio variassem, não se emparelha carros em alta velocidade.

O capitalismo internacional, portanto, tratou de impor políticas de estabilização monetária de alcance global, através de seus organismos de intervenção econômica, nomeadamente o FMI.

Tanto é assim que, quando uma oeda explodia, mesmo na mísera Tailândia, o edifício inteiro sacolejava.

Se a equipe de Fernando Henrique Cardoso teve um mérito, este foi o de ser uma competente aplicadora destas políticas, pelas quais os estados nacionais abriram seu patrimônio ao investimento externo e substituíram a emissão de moeda pela emissão de dívida em títulos, para fecharem suas contas.

Títulos, aliás, super-remunerados por uma política suicida de taxas de juros escabrosas.

Foi assim que o Brasil, em apenas oito anos, duplicou seu endividamento em proporção ao PIB – não se impressione com valores, porque dívida tem relação com a sua renda, exatamente como ocorre com uma pessoa.

Os juros estratosféricos cobriam, com vantagem, a defasagem cambial, resultado da apreciação artificial da moeda brasileira e o capital estrangeiro se remunerava muito bem, obrigado.

No seu segundo governo, FHC passou a ter mais dificuldades e o mercado passou a querer que o Governo, para honrar os juros, passasse, além de emitir dívida, cortar gastos públicos.

Passamos, então, àquela situação de um cidadão que corta todas as despesas da família, arrocha a mesada das crianças, vende os móveis da casa e, no final das contas, está devendo mais ainda.

O governo Fernando Henrique não sou um “sucesso em política monetária” e um desastre em políticas sociais e de desenvolvimento.

Foram faces da de um processo do qual estamos saindo há dez anos, levando dele a única coisa que presta: níveis civilizados de estabilidade monetária.

O resto, os tais fundamentos econômicos e os “legados” do Real é algo que contém muita conversa fiada, que a hipocrisia de tanta gente não tem coragem de apontar.


Por Fernando Brito no Tijolaço

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Quem dá mais?

O que de pior poderia acontecer ao Brasil nesse momento seria reduzir a eleição de outubro a uma gincana para a escolha do melhor amigo dos mercados. Esta semana Eduardo Campos abriu o seu baú e mostrou um pedaço dos dotes que pretende oferecer à praça.

Em troca de apoio e indulgência dos mercados, o neto que envergonharia o avô quer entregar um mandato fixo ao BC, com metas plurianuais de inflação e superávit fiscal.

Uma espécie de outro país dentro do Brasil. 

Ao lado de um Presidente da República escolhido pelo voto direto, teríamos um presidente da republica do dinheiro. Com autonomia, e dotado de ferramentas calibradas e com abrangência suficiente para induzir e condicionar o destino do desenvolvimento, os limites da democracia, a sorte da sociedade.

Assessores do tucano Aécio Neves, sendo o economista Edmar Bacha o mais loquaz entre eles, não deixam por menos.

Um revival do PSDB no poder faria tudo isso e muito mais, asseguram pregoeiros de bico longo.

Por exemplo: deflagraria um choque de ‘eficiência’ com a derrubada em série de tarifas sobre importações.

O que sobrasse da indústria local e do emprego seria de primeira linha, garantem.

Outro arquiteto de países paralelos, o tucano Pérsio Arida, acha pouco a independência do BC.

Para ir além, sugere a independência da própria moeda nacional em relação ao governo.

Seu projeto, antigo fetiche do neoliberalismo verde-amarelo, é assegurar a conversibilidade automática do Real em relação ao dólar.

Viraria um anexo do dólar.

Terceirizar a moeda de uma nação é o equivalente econômico a renunciar ao monopólio da força por parte do Estado: abdica-se de um dos instrumentos cruciais na defesa do interesse público para entregar a sua gestão ao apetite privado.

A politica monetária vira uma espécie de Ucrânia nas mãos dos francos atiradores dos mercados.

O governo Dilma, sob as turquesas das agências de risco e da guerra de expectativas da mídia e do capital financeiro, falou a língua que eles entendem na última 5ª feita.

A oito meses das eleições, o governo cortou R$ 44 bi em investimentos, rebaixou a expectativa de crescimento do PIB para 2,5% e fixou o superávit fiscal em 1,9% do PIB.

O monólogo que anuncia ‘tempos difíceis’ vai impondo a sua ordem unida na frente da produção, do dinheiro, do emprego e da própria política.

Por tempos difíceis entenda-se a ampliação da margem de manobra dos capitais especulativos, que passam a ter na cambaleante recuperação das economias ricas um ponto de fuga adicional.

Graças a ele, amplificam seu já robusto poder chantagem sobre nações, governos e candidatos do mundo em desenvolvimento.

Ninguém sabe exatamente qual o fôlego ou a consistência da dita recuperação.

Depois de quase sete anos de colapso da ordem neoliberal, os indicadores mostram um saldo de terra arrasada no emprego e nos índices sociais e saneamento financeiro.

Por exemplo: hoje os fundos de investimento e de pensão tem 31% mais dinheiro do que o saldo anterior à crise. Com uma bolada equivalente a 75% do PIB mundial, eles detém um poder de comando apreciável sobre bolsas, moedas, governos e economias carentes de capitais, de um modo geral.

A narrativa conservadora faz o resto ao festejar o poder coercitivo adicional dessa alavanca , a cada suspiro na ‘recuperação’ das economias ricas.

O cheiro da virada de ciclo já basta.

Massas monstruosas de capitais se movimentam pelo mercado, ou apenas ameaçam faze-lo, ‘precificando’ hoje um amanhã que ninguém tem a certeza de quando virá nem como será.

Não importa: a incerteza é a água dos cardumes especulativos.

Governos, povos e nações precisam de chão firme: planejamento, regulação, metas de investimento, planos de crescimento de longo prazo.

O dinheiro grosso e os magos da arbitragem, ao contrário, respiram melhor debaixo do oceano da incerteza.

Ao não se confrontar as duas lógicas sanciona-se um esbulho.

O do jornalismo econômico, por exemplo, que mantém intacta a fé nas virtudes do laissez faire , como se 2007/2008 nunca tivessem existido no calendário econômico mundial.

A crítica cerrada ao Brasil por ‘ter abandonado’ as reformas amigáveis abafa uma pergunta básica: 'Onde estaria o país hoje se a sua condução na crise tivesse sido obra dos sábios tucanos, por exemplo?'

O espelho europeu oferece a inquietante pista de que seríamos agora um grande Portugal.

Ou uma dilatada Espanha - um superlativo depósito de desemprego, ruína fiscal e sepultura de direitos sociais, com bancos e acionistas solidamente abrigados na sala VIP do Estado mínimo (para os pobres).

Incorporar os imperativos das agencias de risco, sem abrir uma discussão com a sociedade sobre os desafios da transição em curso no desenvolvimento brasileiro, pode gerar no imaginário social o efeito de uma gigantesca empresa demolidora.

Marretas sabidas golpeiam dia e noite a confiança erigida ao longo de uma década de construção negociada da democracia social no país.

O desafio progressista é fazer o contraponto desse desmonte.

Mesmo ao ceder no varejo –quando inevitável-- é crucial reafirmar as linhas de passagem no atacado e distinguir um projeto de desenvolvimento da mera contabilidade pró-mercados.

O quadro latino-americano e mundial sinaliza uma inflexão de tempo histórico.
Não por acaso o site de O Globo desta 5ª feira editava como irmãs siamesas as imagens dos conflitos em Caracas e em Kiev.

A mensagem é nada sutil: afrontar o mainstream leva ao caos.

Não por coincidência, no mesmo dia, Obama emitia ordens imperativas a Maduro e ao governo da Ucrânia.

Mitigada a crise no front interno das nações ricas, cuida-se de restabelecer a ordem nos quintais indóceis.

É nesse ponto que o timming das ações do governo – de qualquer governo – faz enorme diferença na reordenação em marcha da correlação de forças.

Cada gesto, cada decisão, cada anúncio adquire uma dimensão estratégica; a forma como as providências são comunicadas, ademais de sua projeção e escopo mais geral, sobre o qual não pode pairar dúvida , ganha importância decisiva na disputa pelos corações e mentes da sociedade.

Uma crise de incerteza tem um tempo certo para ser abortada, ou derrotará o governo --a produção, o emprego e o imaginário social.

Os tempos são outros; a globalização tornou tudo mais difícil, alega-se.

E é verdade.

Mas é verdade também que a lógica dos mercado não vai resolver os problemas que ela mesma criou. 

Não se pode amesquinhar o único espaço no qual esse poder imperial se defronta com um outro de igual para igual: a luta política na democracia.

O governo Dilma disse aos mercados nesta 5ª feira como pretende zelar pelos seus interesses.

É preciso que diga, a partir de agora -- e de forma contundente na campanha— como um novo mandato progressista vai construir hegemonia dos interesses sociais mais amplos na travessia para o novo ciclo de desenvolvimento brasileiro.

Por Saul Leblon na Carta Maior

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A violência usurpou a democracia


Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha.



Há algo de podre na política brasileira. O discurso do ódio contaminou a cultura. A violência física que assusta não é mais condenável do que a degradação pela palavra. Introduzido durante os debates da Ação Penal 470, a televisão propagou Brasil a fora o escárnio como argumento, a salivação como prova irrefutável e a falta de compostura de alguns magistrados como aparte retórico. Surpreendente a cada dia, durante todo o segundo semestre de 2013, os indiscutíveis mestres do STF, solidamente preparados, transformavam-se em arengueiros pernósticos a vociferar vitupérios em latim, em alemão e em inglês. À língua portuguesa reservaram-se rebuscadas construções gramaticais com que degradavam de modo vil os réus em julgamento. O valor intrínseco das evidências, muita vezes nulo, era irrelevante para o altissonante juízo que os homens de capas fúnebres proferiam.

Foi negado aos acusados a preservação última da dignidade de pessoa, a mesma que foi concedida ao assassino de Tim Lopes, Elias Maluco, ao ser descoberto: “prende, mas não esculacha”. Com linguajar de estilo maneirista, as capas fúnebres do Supremo Tribunal Federal esculacharam quanto quiseram os réus da Ação Penal 470 perante uma audiência nacional, nela incluídos os “Elias Malucos” em liberdade. E continuam, buscando proibir que sejam depositários da solidariedade de cidadãos e cidadãs em pleno gozo de seus direitos civis e políticos. Não podendo oficialmente matá-los ou bani-los, apostam impor-lhes o ostracismo. É o discurso da vingança impotente movido a ódio.

O estímulo ao linguajar desabrido e ao julgamento apressado e irrecorrível encontrou na já virulenta blogosfera a ecologia apropriada para reprodução cancerosa. Com a ferramenta do anonimato e a indulgência prévia a qualquer desvario, o Caim em nós desabrochou com velocidade sônica. A filosófica vontade de morte, a definição humana de um ser para morte, revela-se menos conceitual e inocente na real inclinação para matar. A internet veicula milhares de assassinatos virtuais e de convocatórias à destruição. Sem não mais do que o subterfúgio de códigos primários, quando muito, ações predatórias são incentivadas a qualquer título. É total o descompasso entre avanço social e econômico do País e as toscas bandeiras eventualmente desfraldadas. Na internet ou nas manifestações selvagens até mesmo os partidos radicais perdem importância. Não são eles que se aproveitam da turba para propaganda e crítica ao governo, é a violência irracional que se serve deles como escudo e defesa ideológica.

As antigas irrupções de quebra-quebra, de confronto entre polícia e manifestantes, e até mesmo episódios de grande magnitude, como a destruição das barcas em Niterói, no século passado, não têm parentesco próximo com o vírus do ódio contemporâneo. Aquelas eram manifestações tópicas, de enredo conhecido e de duração previsível. Estas são projetos de vida e morte. Tempo mal empregado o debate sobre a responsabilidade partidária dos confrontos atuais. O novo é a capacidade de mobilização a-e-trans-partidária das convocações subliminarmente homicidas.

A agressão pela palavra é companheira da agressão à palavra, à linguagem. A amputação da língua portuguesa tem sido o resultado não antecipado da linguagem de Caim. São as frases, os verbos, as concordâncias as primeiras vítimas de todos os blocos de suposta vanguarda. Essas agressões são antigas, mas da blogosfera estão sendo trasladadas ao vocabulário jornalístico e da televisão. Não só os textos de colunistas, repórteres e comentadores trazem conteúdo hiperbolicamente crítico, mas o vocabulário que utilizam é vulgar e de cada vez mais miserável. Não mais m..., pqp, fdap ou c......o.

Agora, intelectuais e jornalistas se esmeram por extenso na vulgaridade da frase e na crueza dos termos. É uma violência à palavra, ajudando a violência pela palavra, destruindo importante fonte de transmissão de cultura. Não se aprimora o aprendizado da língua portuguesa lendo os jornais, as revistas, seus colunistas e editoriais rasteiros. Tornaram-se tão decadentes quanto o ressentimento que difundem. Nem se discorda mais, se ofende. A violência está usurpando a democracia.

Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha. Para essa há remendos que asseguram a sobrevivência democrática. Em putrefação está a cultura nacional pelo envenenamento de parte de suas fontes de elite: a cultura jurídica, o debate político e a cultura da informação. O péssimo é que, tal como os políticos costumam absolver seus pares, é mínima a probabilidade de que juízes ou professores ou jornalistas reconheçam a responsabilidade que lhes toca nessa podridão. São castas auto-imunes. 

Por Wandeley Guilherme dos Santos na Carta Maior

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A única força capaz de resistir aos mercados


A desordem financeira global não cederá tão cedo, nem tão facilmente; o cerco pela adoção da vacina ortodoxa é cada vez mais asfixiante.



A desordem financeira global não cederá tão cedo, nem tão facilmente, avisam os solavancos recorrentes das bolsas mundiais e a volatilidade dos mercados de câmbio.

Dia sim, dia não, sirenes alertam para as intempéries de uma transição em curso: é só o começo.

Quando os EUA elevarem a taxa de juro (hoje negativa) o sacolejo pode piorar com congestionada migração de capitais ao bunker de origem. É o vaticínio do jogral que nunca desafina.

A precificação desse futuro inspira cautela mas não pode significar imobilismo.

O cerco pela adoção da vacina ortodoxa é cada vez mais asfixiante.

Entende-se por isso prevenir a fuga de capitais, e a retração dos investidores, entregando por antecipação o que eles cobram: novas altas nos juros e cortes robustos no gasto fiscal.

O conjunto precipitaria a emergência de uma economia entrevada em desemprego e recessão que se pretende evitar.

Capitais viciados na alfafa suculenta da arbitragem de juros, e na aveia fina da volatilidade das moedas, cobram rapidez na liberação de novos piquetes.

Nações estremecem; o bucho protuberante do rentismo estica e brilha: grandes bancos quadruplicaram seu lucro na Espanha no ano passado; os suicídios bateram recorde no país, com alta de 11%.

O Brasil iniciou uma ziguezagueante correção da taxa de câmbio em 2012.

A desvalorização acumulada do Real é superior a 17%.

A meta do governo é equilibrar a paridade em R$ 2,45 (bateu em R$ 2,43 nesta 3ª feira).

Busca-se superar uma valorização que esfolava a indústria e golpeava o comércio exterior do país.

O déficit de US$ 4 bi em janeiro foi fortemente pressionado pela importação de bens de consumo, cujo similar nacional foi preterido pelo diferencial do preço.

A taxa de juro brasileira já é a 3ª mais alta do mundo (superior a 4% em termos reais)

Nada disso adianta e não adiantará, assegura a emissão conservadora.

Mesmo abrigado em um lacre de reservas equivalente a 13 meses de importações, a julgar pela vontade do mercadismo, o país deveria cumprir a penitência prescrita a outras praças infinitamente mais fragilizadas.

Os paladinos do capitalismo pró-cíclico, a exemplo de Edmar Bacha, formulador tucano e assessor especial de Aécio Neves, tem a receita na ponta da língua.

A depender deles, o Brasil iniciaria desde já um tratamento feito de intermináveis doses de ajustes e arrochos recessivos, com a revogação maciça de tarifas protecionistas e alta sideral dos juros.

O país que sobrar disso poderá estacionar a carcaça no cemitério da paz salazarista que hoje abriga os metabolismos exauridos de Portugal, Espanha e assemelhados.

É o que os mercados podem fazer pelo Brasil.

E o farão, se não forem contidos.

O fatalismo do receituário conservador exprime uma tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva, elevado desemprego e especulação solta na esfera financeira (leia a análise de Michael Roberts; nesta pág; bem como a entrevista de Marcelo Justo com chefe de investigação do Conselho Europeu de Relações Exteriores, Hans Kundnani, e a nota neste blog ‘Obama: o mercado vai bem, o povo vai mal’).

Se quiser resistir ao rodo nivelador, o Brasil terá que calibrar os ajustes que precisam ser feitos –como o do câmbio e a maior ênfase no investimento-- a contrapelo dos automatismos de mercado.

Só existe uma força capaz de fazer frente a eles: a política.

A política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se impôs.

Só ela poderá reverter a brutal agonia da decadência atual.

A espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929 foi o recuo desastroso do controle da Democracia sobre o poder do Dinheiro. Seu vetor, o desmonte das travas regulatórias do sistema bancário consolidado no pós-guerra.

Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de suas referências pelos valores neoliberais, alargaram os vertedouros para o espraiamento da dominância financeira atual.

A queda do Muro de Berlim em novembro de 1989 simbolizou a supremacia de uma ordem regressiva que agora vive a sua fase crepuscular.

A sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder autorregulador dos mercados perdeu a capacidade institucional de gerar antídotos às degenerações intrínsecas a essa renúncia.

A democracia terá que se reinventar para que tal possibilidade se recoloque no horizonte da ação política.

Não é uma agenda protelatória à espera de um alvorecer redentor.

É um imperativo à negociação política do passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.

Caminhar em busca desse ponto de mutação requer, ademais do discernimento do governo, a prontidão das forças sociais para trilhar o caminho.

Faz parte do trajeto um salto na compreensão das interações perversas que subordinam o emprego, o salário e a própria sobrevivência operária à corrosão industrial em marcha batida na economia.

Juros altos e cambio flutuante transformaram-se em armadilha contra a produção e o emprego.

A valorização cambial nos últimos anos beneficiou o poder de compra dos salários.

Mas o crescimento desbragado das importações vazou a demanda para a China e transferiu vagas para a Ásia.

Retificar o curso dessa sangria tem um preço.

Se o ajuste for feito via mercado, será descarregado integralmente no bolso do assalariado.

Num processo de repactuação política , ônus, bônus e prazos serão ordenados pela correlação de forças em movimento –que terão nas eleições de outubro um de seus moduladores.

Uma certeza emerge das tensões e impasses refletidos nos indicadores econômicos: o capitalismo aceita tudo.

Menos a violação do seu impulso vital imiscível, como água e óleo, com ideais de harmonia e estabilidade.

Não é a necessidade que comanda a produção. É o oposto.

É nesse percurso avesso a convergências sociais que regurgitam as bolhas constitutivas de uma crise permanente de superprodução --de capitais fictícios e não de mercadorias.

Desmontar essa usina efervescente, repita-se, não é obra técnica para os mercados.

Ela tampouco será revertida em um só país e delimita a correlação de forças em cada um deles.

Mas há mais a ser feito do que simplesmente sancionar a fatalidade ortodoxa.

O que há para ser feito é romper a caixa preta do economicismo com uma repactuação progressista do desenvolvimento brasileiro.

A premência desse mutirão político soou a sua hora e a eleição de outubro se oferece como seu catalisador no país.

A ver.

Saul Leblon, no editorial da Carta Maior

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Dona Zelite reclama: meteram a mão no meu IOF


A Zelite está inconformada. Agora, seu rolezinho no exterior ficou mais caro. Fui vítima de um atentado violento ao meu direito de livre compra, diz ela.





Paris - Tendo chegado à capital francesa na semana passada, Dona Zelite cumpriu uma estafante agenda de entretenimento que incluiu um rolezinho básico pela célebre avenida dos Champs-Elysées, de manhã, uma tarde na Eurodisney e um colóquio com Joaquim Barbosa, à noite.

Mas nada disso foi suficiente para acalmá-la. Dona Zelite está possessa.

"Fui vítima de um atentado violento ao meu direito de livre compra" - disse a cidadã do mundo que tem sua residência oficial em Higienópolis, o bairro chiquérrimo de São Paulo.

“Ofende a Declaração Universal dos Direitos Humanos”!”.

“A da ONU”? perguntei.

“Não”, ela respondeu. “Esta é coisa de comunista. É a do FMI”.

O suposto atentado teria sido cometido pelo governo brasileiro, que elevou o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros (IOF) de 0,38% para 6,38% para as transações de débito em cartão no exterior.

As transações na opção crédito já eram debitadas nesse valor. A medida igualou o imposto do cartão pelo patamar mais alto.

Perguntei à Zelite quando ela percebeu que haviam passado a mão em seu IOF.

"Senti algo estranho assim que desci da primeira classe da aeronave. De repente, percebi que estava sendo bolinada em meus valores mais profundos. Quando olhei para trás, vi o ministro Guido Mantega passando a mão no meu IOF".

Segundo a Zelite, o aumento do IOF é quase um confisco da propriedade privada, uma reforma agrária no mundo das finanças, além de ser uma quebra de contrato gravíssima e um pecado capital, na verdade, um pecado contra o capital.

Em sua opinião, é pior que o confisco da poupança perpetrado pelo governo Collor. 
Como bem conheço a Zelite de outros carnavais, retruquei imediatamente que, se bem me lembro, à época do confisco, a Zelite não reclamou de nada. Muito pelo contrário. Apoiou entusiasticamente.

"Muito fácil de explicar. Rico não tem dinheiro em poupança. A gente se garante pondo nosso dinheirinho nas Ilhas Virgens".

Lembrei à socialaite que as tarifas bancárias abocanham muito mais que o IOF.

Dona Zelite empinou o nariz, deu com os ombros e, simulando um sorriso irônico, explicou como se fosse a coisa mais natural do mundo: "mas banco é privado, meu querido. Privado pode. Governo é que não pode. Banco pode fazer o que bem entender. Quem quiser que troque de banco. Agora, neste nosso país difícil é trocar de governo, com esse povinho votando sempre no mesmo".

Minha tentativa de vencê-la pelo cansaço prosseguiu para mais um round. Lembrei à Zelite que ela gasta mais com o garçom e com o couvert do restaurante do que com IOF. "Exatamente. Eu agora não sei como cobrir essas despesas, vai fazer falta. O aumento do IOF prejudica o garçom, vai ter gorjeta de menos. Agora, no meu couvert ninguém mexe.".

Cá entre nós, foi algo realmente desolador. A Zelite quase me convenceu.
Apontando para o Museu do Louvre, como se tivesse da Vinci, Rodin e Rembrandt por testemunhas, mostrou-me o quanto o aumento do IOF na opção débito do cartão foi um duro golpe para a humanidade.

Seu argumento mais forte ainda estava por vir: "eu já saquei qual é a desse governo. Ele quer que eu troque Paris, Miami e Nova York pela 25 de março ou pela Feira de São Cristóvão. Jamé!".

Se não me engano, "jamé" quer dizer "jamais". Acho até que se escreve do mesmo jeito em Português, só que com um toque de classe.

Então, a quem interessar possa: de agora em diante, para dizer "jamé" na opção débito tem que pagar 6,38% de IOF. Ser chique anda cada dia mais caro. Assim não dá.


Créditos da foto: Maringoni 

Estanislau Castelo Via Carta Maior