quinta-feira, 24 de março de 2016

O Fascismo do Século XXI e o papel da Classe Média


Há sinais claros de que uma parcela influente da sociedade brasileira está se aproximando cada vez mais dos valores totalitários específicos do fascismo.




Quem algum dia teve estômago para assistir ao maravilhoso e grotesco “Salò, 120 dias de Sodoma”, de Pasolini, encontrou lá a definição mais aguda sobre o fascismo e suas peculiaridades ante outras formas de totalitarismo. No filme, Pasolini escancara ao público uma personagem absurdamente banal e monstruosa de Mussolini, que se enclausura com sua alta cúpula de governo em uma mansão de campo, levando com ele dezenas de jovens, homens e mulheres, com as quais praticaria os mais abomináveis atos possíveis e imagináveis pela mente humana.

O que é que Salò tem que ajudaria a compreender a sociedade brasileira nos dias de hoje? Muito. Há sinais claros de que uma parcela influente da sociedade brasileira está se aproximando cada vez mais dos valores totalitários específicos do fascismo. Essa percepção não vem somente dos recentes episódios de espancamentos físicos e morais de pessoas comuns, na maioria mulheres, inclusive mães com bebês, única e exclusivamente devido à roupa vermelha utilizada em espaço ppúblico. Não, a percepção de que o Brasil está gestando o fascismo do século XXI vem do comportamento de suas instituições, ou melhor, do estado de sítio a que elas estão sendo progressivamente submetidas. 

O obsoleto sistema político brasileiro adotou como estratégia de sobrevivência o abandono das principais regras de convivência democrática, em prol do objetivo inescrupuloso de retirar do poder, a qualquer custo e sem fato concreto, um presidente democraticamente eleito. A celebração dessa festa bizarra assumiu contornos alarmantes quando nenhuma repreensão, fora do campo democrático, foi vista diante do vazamento a veículos alheios ao devido processo legal de escutas ilegais da mandatária máxima à mídia encastelada na defesa de seus interesses de derrubar o governo, expondo as garantias constitucionais aos ouvidos de todos.


A democracia é uma instituição frágil, convive mal com os sentimentos dos homens; mas tende a se consolidar na sociedade se houver tempo para florescer, e o Brasil esta longe desse exemplo. Na última década, a combinação das redes sociais com o decadente sistema político fermentou novas bases de avanço do fascismo, conferindo voz pública a pessoas que restringiam suas manifestações grotescas às mesas de bar, aos cultos, às lojas e agremiações sociais e à tribuna exercida por partidos antes nanicos e exóticos. Atores políticos participaram do banquete coprofágico e utilizaram a fragilidade das instituições democráticas para golpear valores fundamentais de nossa sociedade moderna. Em poucos anos, temos em curso a redução da maioridade penal, a restrição do conceito de família, a criminalização dos movimentos sociais, o ataque a múltiplos direitos fundamentais da seguridade social, a entrega da soberania sobre os recursos naturais às grandes corporações internacionais. O fascismo do século XXI vai-se fortalecendo na desconstrução dos direitos constitucionais pactuados pela redemocratização. 

Hannah Arendt ensina que a força totalitária espreita a qualquer ação política, mesmo dentro da democracia, alimentando-se de todos os campos ideológicos. O fascismo (considerando suas inúmeras variantes históricas) é a forma mais brutal desse governo, mas, para ele existir, precisa estar sempre hígido, cheiroso, impecável. O fascismo nutre-se do sentimento de pureza das pessoas de bem ao seu redor, em suas camisas negras ou verdes-amarelas, convictas de que contribuem para a ampliação da democracia, quando fazem o inverso. Atrás da montanha de vaidades construída pela “beleza” fascista é que se operam os campos de concentração na sodoma dos homens. 

Nesse invólucro que protege o fascismo dele mesmo, os cidadãos do lado claro da montanha não podem saber o que acontece no lado escuro dela. Enquanto a turba ocupa as ruas exigindo candidamente o verde-amarelo do fim da corrupção (de toda a corrupção!), o fascismo corrompe o sistema democrático ao turvar as garantias individuais em nome do jogo de poder. Juízes transformam-se em justiceiros e assumem as feições sobre-humanas do fascismo. Heróis acima da lei capazes de guiar o destino dos homens comuns. O fascismo é uma epopeia peculiar, pois se mobiliza nos heróis-ninguéns, em pessoas esquecidas pelas elites sociais, culturais ou intelectuais que, repentinamente, são alçadas à condição de semi-deuses. Não é por menos que, nos períodos em que o fascismo impera como sistema, a produção artística rebaixa-se em quantidade e, principalmente, em qualidade. 

A Classe Média é a referência política de qualquer sistema social moderno e capitalista. Por isso, a disputa do fascismo está dentro de seus determinantes, na qual esse avança à medida que o sistema político não encontra mais formas de equacionar democraticamente o conflito distributivo no interior do desenvolvimento socioeconômico. Diferentemente do que afirmou Mussolini ao definir a sociedade por meio de um Estado totalitário em que nada estaria abaixo dele, o fascismo na verdade representa uma ruptura radical da separação entre Estado e Indivíduo, fundindo-os numa força sem regras que limitem a existência de ambos. A engenharia social, ao mesmo tempo racista e racionalista, é a principal propaganda de atração dos descontentes e dos desesperados em meio às crises cíclicas do capitalismo. 

A Classe Média brasileira é peça chave na direção do processo democrático, e, infelizmente, tem demonstrado intensa fadiga desde sua peculiar consolidação no período do Regime Militar, cujos valores republicanos foram deturpados pelo ambiente de ausência de liberdades civis e pela impensável concentração de renda e riqueza promovida pela ditadura. A meritocracia, modo de operação da legitimidade de qualquer classe média no mundo, é uma falácia no Brasil, pois não há igualdade de oportunidades em nenhum estágio de vida entre um membro do interior da Classe Média e outro de fora dela. Nos anos 2000, o convívio com os subalternos foi promovido pela tentativa de estruturação do mercado de trabalho e pelo resgate das políticas públicas. 

Muitos pontos de contato foram produzindo tensões entre a Classe Média e as novas classes trabalhadoras em ascensão. Nos espaços públicos, nas universidades, nos lares, tudo parecia em disputa. A intensidade do crescimento econômico favorecia muito mais as rendas baixas que as médias-altas. Em termos geracionais, os filhos da Classe Média pós-ditadura sentem-se em desvantagem ante os filhos das classes trabalhadoras. Esta é a principal origem do ódio de classes hoje no Brasil. Mas o fascismo não vive apenas de ódio, ele precisa de algo mais: deve-se justificar na ideia de pureza dos cidadãos de bem. É preciso que este ódio vista a máscara dos símbolos da Classe Média; cujo centro é a sempre meritocracia. 

Como o código de ascensão social ancorado por políticas públicas afronta simbolicamente o mito da meritocracia, a Classe Média inteira não é capaz de proteger a incorporação dos outros extratos, portanto ela se fragmenta entre uma subclasse progressista e outra profundamente reacionária. O fascismo atua diretamente sobre essa cisão, aprofundando o antagonismo entre as frentes de posicionamento e fragilizando a defesa histórica que a Classe média deveria ter para com a democracia. A promessa do fascismo é de um caminho mais curto de retrocessos sociais, amplificando o desespero social em medidas que ignoram as regras do jogo democrático. O objetivo último, a volta dos novos atores a seus lugares do passado, é o que importa. 

Amparado pela propaganda cotidiana dos monopólios midiáticos, a fração racionária da Classe Média acredita, como um fetiche, ser a real portadora da mudança moral do país. Isso é o mecanismo mais profundo de florescimento do fascismo: a transferência para o outro de todo o lado sombrio da montanha. Reproduza isso a um partido político, que em segundos a onda fascista atinge as instituições, acovardando-as ante os heróis-ninguéns criados no processo histórico. O fascismo do século XXI representa este atalho no retrocesso social, e a Classe Média pode-se transformar em sua vanguarda contrarrevolucionária.

André Calixtre na Carta Maior

segunda-feira, 7 de março de 2016

Hora de decidir



Os golpistas intensificam os ataques, mas a proporção dos defensores da democracia aumentou

O embate é evidente. A sociedade brasileira precisa decidir o que quer

A sociedade brasileira precisa decidir o que quer. Se acredita que devemos insistir na democracia ou se considera que não somos um país onde ela é possível. 

São muitos os paralelismos entre o momento atual e o que antecedeu o golpe de Estado de 1964. Lá, como agora, as velhas classes dominantes, seus representantes e porta-vozes se convenceram de que, na democracia, não conseguiriam continuar impondo seus interesses ao conjunto da sociedade. No jogo eleitoral, perderiam.

Mas não tinham força e legitimidade para virar a mesa na marra. Alguém, em seu nome, teria de fazê-lo. O papel dos militares naqueles anos está sendo hoje desempenhado por outra aliança nascida dentro do aparelho de Estado. Seus agentes são juízes, policiais e promotores, imbuídos da mesma convicção da superioridade de propósitos que coronéis e generais compartilhavam. 

Os militares abandonaram sua função moderadora em 1964, assim como os integrantes dessa nova aliança descartam hoje a função de equilíbrio típica do Judiciário. Os “jovens turcos” togados e seus satélites ignoram as hierarquias e encurralam aqueles que deveriam ser seus superiores. Assemelham-se aos tenentes enraivecidos que invadiram a política no início do século XX, impacientes com a democracia e convencidos de que eram melhores que qualquer um. 

Essa nova aliança se inspira e é incentivada por instituições ideológicas internacionais, de maneira análoga ao que aconteceu com parte da liderança militar nos anos 1950. Só um tolo suporia que os ensinamentos que receberam nos EUA, assim como os acordos de cooperação que firmaram, eram os melhores para os interesses nacionais. Algo semelhante acontece hoje no treinamento e no estímulo que os integrantes dessa aliança recebem de fora. 

Na vida social, os pontos de contato entre ontem e agora são muitos. Os que marchavam em defesa da ordem e da propriedade em 1963 e 1964 são tão caricatos e ridículos como seus filhos e netos. Acreditavam em bobagens igualmente toscas e professavam a mesma religiosidade primitiva.

O proscênio é parecido: um setor da burocracia rebelado e se achando capaz de reformar o País, um pedaço da sociedade “nas ruas” fazendo coro para reivindicar uma intervenção “saneadora”. Também é igual o ingrediente midiático, uma imprensa dedicada a escandalizar o noticiário e a amplificar as insatisfações. São exatamente os mesmos os órgãos de imprensa que patrocinaram o golpe de 1964 e os que hoje atuam. A estratégia é igual, de amontoar denúncias e atacar no plano pessoal a liderança trabalhista. 


Acampamento de manifestantes pedem intervenção militar, em Brasília. Inúmeros são os paralelismos entre 64 e o momento atual (Foto: Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil)
A elite política conservadora de então tem muito a ensinar a seus sucessores. Os que ficaram na retaguarda, espicaçando os militares, orientando jornais e revistas a incendiar a opinião pública e rindo dos tolos que foram às ruas, mas encorajando-os, se surpreenderam com o tamanho da serpente cujos ovos chocaram. Nada mais exemplar que a trajetória de Carlos Lacerda, de líder maior do golpismo a vítima de banimento da vida política.

Tucanos, demistas e associados precisam se lembrar que nada garante que a aliança golpista se limitaria a lhes transferir o poder. Eliminados petistas e trabalhistas, quem asseguraria que seus integrantes voltariam pacificamente à normalidade? Como ter certeza de que a imprensa não os rifaria na hora em que se tornassem alvo? 

Mas não há apenas semelhanças entre 1964 e hoje. Trinta e tantos anos de democracia fizeram com que aumentasse a proporção de pessoas avessas a aventuras golpistas. O desenvolvimento das últimas décadas e o conjunto de políticas de ampliação da cidadania produziram um povo mais disposto a ser ator e não apenas espectador da vida brasileira. 

Consolidou-se a primeira liderança popular de expressão nacional. Lula, apesar da incessante campanha para desmoralizá-lo, continua a merecer o respeito e o carinho de uma parcela da sociedade maior que qualquer político jamais teve em nossa história. Atacá-lo é atacar esses milhões de pessoas. Ninguém sabe como reagiriam. 

Quem não se alinha com o oportunismo de alguns políticos, quem aprendeu que é no respeito à democracia que podemos mais facilmente e melhor resolver nossos problemas, quem acreditou e acredita na capacidade do povo escolher seu caminho sem tutela, precisa refletir a respeito da conjuntura que atravessamos. Deixados soltos, os aventureiros do golpe não se deterão, até porque se acham perfeitos. Há que pará-los.

Por Marcos Coimbra na Carta Capital

sábado, 5 de março de 2016

O passado obscuro do procurador Carlos Fernandes dos Santos Lima (Lava Jato)



O espetáculo midiático em que se transformou a condução coercitiva do ex-presidente Lula apenas um dia após o “furo” da revista IstoÉ, finalmente deixou escancarado o que todos já sabiam: o alvo principal da Lava Jato é, e sempre foi, o maior líder popular do Brasil.

Se antes os procuradores que coordenam os trabalhos da Lava Jato tergiversavam utilizando argumentos republicanos como o de que a operação não investiga pessoas mas fatos, a impressão que ficou na entrevista dada pelo MPF é que já nem mais investigam Lula, a sua culpa já foi decretada. Provas para os procuradores são detalhes insignificantes.

Aliás, chegou a ser emblemática a decepção do procurador ao afirmar que os mandatos de busca e apreensão efetuados na casa de Lula e no seu Instituto teriam sido prejudicados justamente em função do vazamento da operação pela imprensa.

O que ele chama de “prejudicado” é o fato de basicamente não terem encontrado nada de relevante que amparasse o linchamento da mídia e a condenação prévia de seu seqüestrado.

Se a operação foi “prejudicada” por vazamentos ilegais de mandatos sigilosos divulgados na grande mídia, não seria o caso desses mesmos procuradores e do juiz Sérgio Moro abrirem inquérito para apurar os vazamentos? Imagina. Tolice.

Em se tratando de política e poder, quem acredita em coincidências acredita em fadas e duendes. Até o mais ingênuo dos “inocentes úteis” já sabe do escandaloso consórcio formado pela PF, MPF, Sérgio Moro e a grande imprensa brasileira.

Toda a operação seguiu um rigoroso esquema previamente combinado com os grandes veículos de informação dominados por meia dúzia de famílias. Incrível como quando o assunto é fama, dinheiro e um projeto de poder, as antigas “diferenças” entre a mídia familiar e suas vítimas, e vice-versa, são oportunamente esquecidas.

Ironia das ironias, a mesma revista IstoÉ que preparou o terreno para a grande atuação de Santos Lima e a força tarefa da Lava Jato, no passado não compartilhava da mesma admiração que hoje imputa a um dos atuais mosqueteiros no combate à corrupção.

Em setembro de 2003 a IstoÉ publicou uma matéria sobre Santos Lima cujo título é no mínimo inspirador: “Raposa no galinheiro”. O subtítulo emenda: “Procurador Santos Lima, casado com ex-funcionária do Banestado, tentou barrar quebra de sigilo de contas suspeitas”.

A matéria assinada pelos jornalistas Amaury Ribeiro Jr. e Osmar de Freitas Jr. deixaria o mais ávido “paneleiro” decepcionado, isso se a sua causa realmente fosse o combate à corrupção.

A denúncia ocorreu quando uma comissão de autoridades brasileiras encarregadas de apurar o escândalo do Banestado foi até os EUA em busca de provas e documentos sobre lavagem de dinheiro e remessas ilegais de recursos para o exterior.

Segundo os jornalistas, o procurador Santos Lima tentou de todas as maneiras impedir que os “preciosos documentos” fossem entregues aos membros da CPI. A matéria conta que a atuação do procurador causou constrangimento tanto na delegação brasileira quanto nas autoridades dos Estados Unidos. Nas palavras de um dos americanos: “Foi insólito”.

Como sabemos, o caso Banestado nunca foi devidamente esclarecido. A grande imprensa na era FHC não se dedicava exatamente à investigação de suspeitas de corrupção no governo.

O que realmente sabemos agora é sobre as rédeas de quem a operação Lava Jato está sendo conduzida.

Por Carlos Fernandes do DCM