domingo, 14 de junho de 2015

Contra o capitalismo global, a "ideia comunista"


Filósofos como Alain Badiou, Slavoj Zizek e Daniel Bensaid veem no comunismo o único horizonte contra a predação e a privatização do mundo.







Para alguns, defender o comunismo hoje é um anacronismo. 

Alinhar-se a Karl Marx mesmo na civilizada França do século XXI pode ser arriscado. O filósofo Alain Badiou foi alvo de críticas que o viam como um "perigoso revolucionário" e até mesmo "defensor do regime de Terror", aquele que tomou conta da Revolução francesa e do comunismo stalinista. Seus detratores eram alguns dos chamados "novos filósofos", surgirdos na década de 70, que com o passar do tempo se tornaram anticomunistas intransigentes. 

"O capitalismo global humanizado não pode ser o horizonte final da esquerda”, se insurge o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, para quem é preciso reabilitar a “ideia comunista”, não como algo que já fracassou mas como um universalismo a ser construído.

"Estou convencido que numerosos problemas como os ecológicos, biogenéticos e novas formas de apartheid não podem ser resolvidos pelo capitalismo global", esclarece Zizek, que organizou com Alain Badiou em 2009, em Londres, um colóquio chamado On the idea of communism, que se repetiu em Berlim, em 2010.

O comunismo, o futuro do Homem
Para defender Alain Badiou dos ataques dos "novos filósofos" Zizek e Fabien Barby escreveram, em março de 2010, um manifesto ao qual se juntaram centenas de filósofos e intelectuais do mundo inteiro. O texto do manifesto dizia claramente: "nós não renunciaremos jamais à ideia do comunismo". 

E continuava: "Por mais problemática que seja essa ideia, por mais nova que pareça sua forma de se tornar realidade, por mais críticos que sejamos sobre a história do comunismo no século passado, por mais diferentes que sejam nossas propostas, uma coisa é certa : um comunismo a ser reinventado, de um novo gênero ainda indefinido, é o único futuro do Homem. Porque esta é a eterna e única verdade política. A única justiça que a razão humana pode conceber de forma sadia". 

O manifesto concluía: "O tempo não é mais, queiram ou não, dos fracos, pretensiosos e arrivistas ’novos filósofos’ mas dos filósofos da renovação". 

Filósofos contemporâneos como Etienne Balibar, a exemplo de Badiou e Zizek, acham que Marx deve ser o contraponto do capitalismo atual. A mesma coisa pensava o filósofo Daniel Bensaïd, morto em 2010, em Paris.

O que os une é uma certeza: Karl Marx continua a ser um filósofo fundamental. Eles se debruçaram sobre os escritos de Marx e defenderam em livros e conferências a pertinência de seu pensamento e da idéia do comunismo, que Badiou chama de "hipótese comunista". 

Provocativo e dotado de um senso de humor inabalável, Zizek declarou a um jornal francês: "Continuo comunista porque todo mundo pode ser socialista, até mesmo Bill Gates". 

Badiou e Zizek são os dois filósofos europeus mais conhecidos, traduzidos e comentados no mundo. Para Badiou, como para Zizek, "o desatre obscuro" do stalinismo (como o denomina Alain Badiou) e o fracasso do “socialismo real” não invalidam o horizonte de emancipação radical que é a “ideia comunista”, que eles reatualizam em novas formas de ação. Ambos afirmam um universalismo concreto, um universalismo de combate.

Alain Badiou apresentou seu amigo Zizek em 2008 e novamente este ano em seu seminário como alguém que vem de um horizonte filosófico diferente. "O pensamento de Zizek é fruto da tensão entre o idealismo alemão (Kant, Schelling, Hegel) e Lacan. Sua dialética é mais a da negação, numa elaboração que se faz do lado de Hegel e do real, num conceito que ele encontra em Lacan".

Quanto a seu próprio horizonte filosófico, Badiou diz que ele se constituiu na tensão dialética entre a ideia e a liberdade, entre Platão e Sartre tentando uma resposta à pergunta, "como a soberania da ideia, da verdade, pode ser compatível com a liberdade?"

Renovar a vocação igualitária do comunismo
Citado por Etienne Balibar, o filósofo Louis Althusser, seu mestre, dizia que o comunismo estava presente no meio de nós, imperceptível, invisível, nos interstícios da sociedade capitalista, em lugares onde os homens se associam em atividades sem fins lucrativos. 

De passagem por Paris este mês de junho, Zizek foi convidado a falar no seminário que Alain Badiou dá na École Normale Supérieure de Paris, que frequento há alguns anos. Ele estava na capital francesa para o lançamento de seu livro Menos que nada - Hegel e a sombra do materialismo dialético, prefaciado por Badiou, que o considera "um dos mais importantes livros de filosofia lançado nos últimos anos".

Em um livro anterior, Primeiro como tragédia, depois como farsa, Zizek voltava a Hegel, que considerava que a história se repete necessariamente. Karl Marx observou: "uma vez como tragédia e na vez seguinte como farsa". Ao que Herbert Marcuse acrescentou: "a farsa pode ser mais terrível que a tragédia que ela repete". Considerado por muitos como o "filósofo mais perigoso do Ocidente", o agitado Zizek tem como ambição defender a “ideia comunista”, recomeçar do início, "o que significa não reproduzir o que foi um fracasso mas diante dele renovar a vocação igualitária original do comunismo".

Dito isto, é evidente que ele não vê solução no mercado. 

“Se há uma lição a tirar do fracasso da União Soviética é que o dirigismo da economia nacionalista só funciona numa certa etapa de desenvolvimento industrial tradicional. Não tenho uma fórmula clara. Mas a solução que entrevejo é a de um Estado sustentado por um movimento popular, por uma mobilização extraparlamentar”, declarou ele em 2010, em conferência parisiense. Ele citava como digna de grande interesse a experiência de Evo Morales na Bolívia. Para Zizek, Morales conseguiu uma poderosa mobilização da maioria silenciosa indígena. Assim, ele é sustentado por uma mobilização permanente da maioria.

Ainda não havia o Podemos, na Espanha, nem o Syriza, na Grécia, que empolgam o filósofo hoje.

Segundo Zizek, o stalinismo foi algo muito mais enigmático que o nazismo. Por isso ele concorda com Badiou que chamou o período stalinista de "desastre obscuro". Para Zizek, os dois totalitarismos não podem ser comparados por múltiplas razões que explica.

Na conferência que faria no mês em que morreu, em Paris, em janeiro de 2010, Daniel Bensaïd, filósofo e militante trotskista escreveu um longo texto no qual reafirmava sua convicção que o comunismo é único horizonte contra "a predação e a privatização do mundo". 

Ele escreveu: "De todas as formas de nomear 'o outro', o que está em face do obsceno capitalismo, a palavra comunismo é aquela que conserva maior sentido histórico. É ela que melhor evoca o comum que se dá na partilha e na igualdade, a partilha do poder, a solidariedade que se opõe ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão de um campo de gratuidade dos serviços e bens de primeira necessidade, contra a predação generalizada e a privatização do mundo". 


Por Leneide Duarte - Plon, de Paris na Carta Maior 

Créditos da foto: esquerda.net

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O caos ideológico


A grande confusão ideológica do país é causada pelas próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda.



Em meio à crise política e à retração econômica brasileira, o jantar do dia 12 de maio da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos no Waldorf Astoria de Nova York, reunindo banqueiros, empresários e a políticos da alta cúpula do PSDB, em torno dos ex-presidentes Bill Clinton e Fernando H. Cardoso foi um clarão no meio da confusão ideológica dominante. Em termos estritamente antropológicos, representou uma espécie de pajelança tribal de reafirmação de velhas convicções e alianças que estiveram na origem do próprio partido socialdemocrata brasileiro. Mas do ponto de vista mais amplo, pode se tornar uma baliza de referência para a clarificação e remontagem do mapa político brasileiro.

Afinal, este grupo liderado pelo ex-presidente FHC foi o único que esteve presente e ocupou um lugar de destaque nas reuniões formais e informais que cercaram a posse de Bill Clinton, em 1993, em Washington. Naquele momento foi sacramentada a aliança do PSDB com a facção democrata e o governo liderado pela família Clinton. Uma aliança que se manteve durante os dois mandatos de Clinton e FHC, assegurando o apoio do Brasil à criação da Alca e garantindo a ajuda financeira americana que salvou o governo FHC da falência.


Estes dois grupos estiveram juntos na formulação e sustentação das reformas e políticas do Consenso de Washington e voltaram a estar juntos nas reuniões da “Terceira Via”, criada por Tony Blair e Bill Clinton, em 2008, reencontrando-se agora de novo, na véspera da candidatura presidencial de Hillary Clinton.


Durante todo este tempo os social-democratas brasileiros mantiveram sua defesa incondicional do alinhamento estratégico do Brasil, ao lado dos EUA, dentro e fora da América Latina; sua opção irrestrita pelo livre comércio e pela abertura dos mercados locais; pela redução do papel do Estado na economia; pela defesa da centralidade do capital privado no comando do desenvolvimento brasileiro; e pela aplicação irrestrita das políticas econômicas ortodoxas.


Estas posições orientaram a política interna e a estratégia internacional dos dois governos do PSDB, na década de 90, e seguem orientando a posição atual do PSDB, favorável à reabertura de negociações para criação da Alca; à mudança do regime de exploração do “pré-sal”; ao fim da exigência de conteúdo nacional nos mercados de serviços e insumos básicos da Petrobras e das grandes construtoras brasileiras. Isto pode não ser “um projeto de país”, mas com certeza é um programa de governo rigorosamente liberal, que só coincide de forma circunstancial e oportunista com as teses neoconservadoras defendidas hoje por movimentos religiosos de forte conteúdo fundamentalista.


A novidade destes movimentos no cenário político brasileiro atual surpreende o observador, mas suas teses sobre família, sexo, religião etc não são originais e sua liderança carece da capacidade de formular e propor um projeto hegemônico para a sociedade brasileira. O mesmo pode ser dito com relação ao poder real das recentes mobilizações de rua e de redes sociais, que fazem muito barulho, mas também não conseguem dar uma formulação intelectual e ideológica consistente às suas próprias iras e reivindicações.


Deste ponto de vista, parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda. Não é fácil identificar o denominador comum que une todas estas forças, mas não há dúvida que seu projeto econômico aponta muito mais para o ideal de um “capitalismo organizado” sob liderança estatal, do que para o modelo anglo-saxônico do “capitalismo desregulado”; para uma política agressiva de redistribuição de renda e prestação gratuita de serviços universais, do que para uma política social de tipo seletiva e assistencialista; e finalmente, para uma estratégia internacional de liderança ativa dentro da América Latina, e de uma aliança multipolar com as potências emergentes sem descartar as velhas potências do sistema, muito mais do que para um alinhamento focado em algum país ou bloco ideológico de países.


Se assim é, como explicar à opinião pública mais ou menos ilustrada que um governo progressista deste tipo coloque no comando de sua política econômica um tecnocrata que não tem apenas convicções e competências ortodoxas, mas que seja também um ideólogo neoliberal que defende abertamente em todos os foros uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo para o país absolutamente idêntica a que é defendida pelo grupo que participou do jantar no Waldorf Astoria, no dia 12 de maio.


E como entender um ministro de Energia que defende em reuniões internacionais o fim da política de “conteúdo local” e do “regime de partilha” do pré-sal, duas políticas que são uma marca dos últimos 13 anos de governo e uma diferença fundamental com a posição defendida pelos mesmos comensais de Nova York.


Por fim, para levar a confusão ao limite do caos, como explicar que o ministro de Assuntos Estratégicos desse mesmo governo proponha abertamente, pela imprensa, como se fosse um acadêmico de férias, que se faça uma revisão completa da política externa brasileira da última década, com a suspensão do Mercosul, que foi criado e é liderado pelo Brasil, e com a mudança do foco e das prioridades estratégicas do país, que deveria agora alinhar-se com os EUA para enfrentar a ameaça da “ascensão econômica e militar chinesa”.


Tudo isto dito de forma tranquila, exatamente uma semana antes da visita oficial do primeiro-ministro chinês ao Brasil, que já havia sido anunciada junto com um pacote de projetos e de recursos para levar a frente uma estratégia de longo prazo que passa – entre outras coisas – pela construção de uma ferrovia transoceânica capaz de dar ao Brasil, finalmente, um acesso direto ao Pacífico, com repercussões óbvias no campo da geopolítica e geoeconomia continental. Além disto, este “grande estratego” do governo fez sua proposta um mês antes da reunião do Brics, na Rússia, em que será criado o banco de investimento conjunto do grupo, sob a óbvia liderança econômica da China. Uma trapalhada pior do que esta, só se fosse proposta também a internacionalização da Amazônia.


Talvez por isto tantos humanistas sonhem hoje com o aparecimento de uma nova utopia de longo prazo, como as que moveram os revolucionários e os grandes reformadores dos séculos XIX e XX. Mas o mais provável é que estas utopias não voltem mais e que o futuro tenha que ser construído a partir do que está aí, a partir da sociedade e das ideias que existem, com imaginação, criatividade e uma imensa paixão pelo futuro do país.




José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro “História, estratégia e desenvolvimento” (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras