quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Aulas enlatadas: para onde caminha a política educacional brasileira?

Há décadas o mundo curvou-se ao prêt-à-porter, ao fast-food, à intensidade consumista e assim foi se acostumando com a rapidez com que o tudo pronto, o nem sempre necessário, o efêmero se impõem à nossa vida*.
Foto: Masao Goto Filho
Enlatam-se frutas, sopas, carnes e tudo que couber em belas embalagens que, com a força de uma boa campanha publicitária, virarão dólares, mesmo com gosto pasteurizado ou sem sabor.
 
Aulas não se podem enlatar. Ou podem? O Ministério da Educação anunciou nos últimos dias que comprará aulas semi-prontas, industrializadas, uma espécie de modelo tamanho único para ‘auxiliar’ pedagogicamente os professores. (Dilma convida professor norte-americano Salman Khan para parceria em projeto na educação básica, agência Brasil, 16/01/2013 – 19h10).
 
As aulas do professor Khan foram muito bem compostas por sua finalidade inicial: auxiliar sua prima, que morava distante, a compreender matemática. Ambos dialogavam pela internet e assim, neste processo de mediação, permeado pelo conhecimento recíproco e pela afetividade, foram compondo aprendizagens. Afinal, Khan deveria conhecer a sua prima para ensiná-la. Como afirma Snyders: para ensinar latim a João é preciso conhecer latim e conhecer João.
 
A aula é uma prática social realizada numa condição historicamente situada, que envolve uma dinâmica de contextualizações e atualizações, que não se faz numa única direção de injetar conteúdos prontos; a aula se faz a partir de mediações e atribuição de sentidos e significados entre estudantes e professores.
 
A aula não pode estar pronta antes do encontro professor-estudante, portanto, não pode vir enlatada.
 
Transmitir conteúdo não representa dar aula. A aula é o meio utilizado pela escola para a formação de pessoas, é o momento em que, para aprender, é necessário que o estudante incorpore o conteúdo a seu nível de significado e a função do professor é de identificar diferenciados processos de compreensão, dúvidas, hipóteses dos estudantes, saberes envolvidos no ciclo ensinar/apreender, colaborando para as possibilidades de articulações com outras aprendizagens. O professor começa a construir a aula com o aluno antes de encontrá-lo, mesmo na modalidade a distância.
Sabemos qual a equação para a melhoria da qualidade da educação brasileira: boa formação de professores, condições dignas de trabalho, adequado ambiente escolar e capacidade de gestão democrática das equipes dirigentes.
 
Medidas como essa em questão contrariam a luta histórica de educadores contra a importação de modelos educacionais e a favor de uma política educacional brasileira, comprometida com as nossas necessidades e possibilidades.
 
Felizmente o professor Khan recusou o convite. No entanto, assusta-nos que nossas lideranças não tenham considerado questões fundamentais, pontuadas pelo convidado.
 
Esse convidado apoiado em seu bom senso recusou o convite. Outros não recusarão. Alertemo-nos: a recusa não significa que Dilma mudou de ideia. Assim permanece nossa tensão sobre a próxima fórmula mágica que se buscará para equivocar nossa educação!
 
Quando parece que estamos avançando no campo da Educação retrocedemos com escolhas tão contraditórias. É frustrante! Fica a pergunta: para onde está caminhando a política educacional brasileira?
 
*As autoras Maria Amélia Santoro Franco (Unisantos), Marineide Gomes (Unifesp/EFLCH), Cristina Pedroso (USP/FFCLRP) e Valéria Belletatti (Instituto Federal de São Paulo) são doutoras em Educação e integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Formação do Educador (GEPEFE-FE) da USP
 
Originalmente publicado  na Carta Capital

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

É difícil legislar contra idiotas

O fogo na casa noturna do Brasil: Idiotia e Progresso
 
Jan 28, 2013 12:36pm
 
 
O horrível incêndio na casa noturna do Sul do Brasil no fim de semana vai, como Samantha Pearson escreveu na segunda-feira, aumentar o escrutínio sobre o Brasil. Para um país escalando a tábua da liga econômica global e que se prepara para mostrar seu progresso na Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos, a lista de erros e fracassos que levou ao fogo da noite de sábado é o pior tipo de propaganda.

Mas é justo questionar o governo de um país quando um idiota solitário começa um incêndio num palco?
 
Muitas perguntas estão sendo feitas sobre as origens do incêndio de sábado. A mídia local noticiou, por exemplo, que a casa noturna estava no processo de renovar sua licença de operação e que a licença dos bombeiros tinha expirado em agosto. Mas não dá para apontar o Brasil como único lugar que tem casas noturnas problemáticas.
 
Além disso, houve notícia de que os seguranças inicialmente impediram que as pessoas escapassem do clube antes de pagar a conta (é uma prática comum para visitantes de bares e clubes no Brasil abrir uma conta para pagar na saída). Mas, seja qual for o tempo que se passou antes que descobrissem o que realmente estava acontecendo, seria difícil esperar que fizessem o contrário.
 
Outras perguntas são mais difíceis de descartar. Havia apenas uma saída em funcionamento, aparentemente mal sinalizada. (Muitas pessoas morreram presas nos banheiros, ou porque achavam que era a saída ou porque esperavam sair pelas janelas). O teto do clube estava coberto por isolamento acústico que qualquer inspetor dos bombeiros teria identificado como perigosamente inflamável. Um extintor de incêndio entregue a um integrante da banda para lidar com o início do incêndio aparentemente não funcionou.
 
Os regulamentos básicos, propriamente cumpridos, teriam evitado a tragédia e salvado a vida de 231 jovens. As autoridades, com razão, vão passar por duro escrutínio.
 
Finalmente, e quanto ao ato que diretamente causou as mortes? Existe confusão sobre o que aconteceu. Alguns relatos mencionam um sinalizador aceso por um integrante da banda; outros mencionam estrelinhas; outros falam num fogo de artifício colocado no palco que se chama “sputnik”, que solta faíscas coloridas.
 
O uso de qualquer aparato pirotécnico em espaço público confinado é ilegal no Brasil. E, certamente, qualquer idiota, em qualquer lugar, sabe que isso é incrivelmente estúpido e perigoso?
Não o idiota que o fez em Santa Maria, no sábado. Ele aparentemente disse depois que nunca tinha tido problemas no passado.
 
Falando à Folha de S. Paulo, Valdir Pignatta da Silva, um especialista em segurança contra incêndios da Universidade de São Paulo, disse que esta é uma questão cultural. Os brasileiros, ele disse, não estão alertas sobre a ameaça de incêndios — ao contrário dos ingleses, que relembram incêndios desde o século 17.
 
A ideia de que os frequentadores de casas noturnas britânicas são protegidos pela memória coletiva do Grande Incêndio de Londres não resiste a uma avaliação. E os brasileiros, tão rápidos em enfatizar e questionar seu papel no mundo, não deveriam se culpar muito pela idiotia de Santa Maria.
 
O empresário que soltou fogos de artifício durante um show de heavy metal no clube Station, em Rhode Island, nos Estados Unidos, em 2003, causando a morte de 100 pessoas, não se comportou de forma menos idiota.
 
Existem idiotas em todo o mundo e é difícil legislar contra eles. Até sábado, o Brasil não tinha tido uma tragédia nesta escala em mais de meio século. Se os eventos terríveis do fim-de-semana resultarem em aplicação mais severa das regulamentações, o Brasil terá feito progresso.
 
Leia também:
 
 
 
Texto extraído do Vi o Mundo

domingo, 27 de janeiro de 2013

Era uma vez uma cidade encantada chamada Santa Maria.

De acordo com relatos de servidores do IGP, muitos telefones dos mortos no ginásio tocam sem parar“.
Zero Hora, 27/01/2013.
 
Era uma vez uma cidade encantada chamada santa maria.
 
Para lá acorriam, anualmente, milhares de estudantes de todo o brasil e, principalmente, de santa maria e da região: santiaguenses, são-sepeenses, são-borjenses, cruz-altenses, caçapavanos…
santa maria sempre recebia a todos de braços abertos, com um sorriso escancarado na boca do monte.
 
Choros e abraços marcavam as despedidas de todos que nela buscavam seus sonhos; aos domingos, as rodoviárias da região ficavam pequenas para tantos carinhos e saudades.
 
Tudo começava já durante o ensino médio. pais que geralmente haviam trilhado o mesmo caminho encaminhavam seus filhos para os colégios locais; o santa maria, o centenário, o maria rocha, o maneco…
Um outro tanto concluía o ensino médio em sua cidade natal e para lá rumava à procura de um cursinho pré-vestibular; matemática com o ivo, física com o gérson, química com o enelvo… master, riachuelo e constantino.
 
Outros, ainda, ingressavam diretamente na ufsm, sem passagem por seus colégios ou cursinhos.
morávamos em repúblicas dividindo aluguel, comida, amizades e medos, esses nunca admitidos, que adolescentes, infelizmente, não têm medos.
 
Ía-se na winners, no expresso 362 e na luna luna; um pouco antes, na maison rouge. ouvia-se o trem pagador no panaceia; havia o palace in party, no hotel itaimbé, e o reveillon da rbs; as festas de formatura dos colégios, no avenida tênis clube e no clube recreativo dores, eram tão concorridas quantos as das faculdades.
 
O melhor xis era da padaria pimpão. todos juntavam grana para, ao menos uma vez por mês, tirar a barriga da miséria no espeto-corrido do bovinu’s, embora os buffets livres dos clubes comercial e caixeiral não nos deixassem na mão. o augustu’s era coisa de quem tinha pai rico. bebia-se no pingo e dançava-se legião urbana no DCE. bebia-se cirilinha. Éramos servidos no RU por tios e tias amistosos que sempre atendiam nossos pedidos de “mais um pouquinho, tia”, ou “eu quero aquela sobrecoxa, tio”.
 
As meninas da odonto, da fisioterapia e da farmácia eram tão lindas… o pessoal do direito e da medicina era tão sério…
aos sábados pela manhã o calçadão, vale o chavão, fervia de vida.
 
Vida que se foi, hoje, aos 27 dias deste janeiro de 2013.
Porque essa santa maria também morreu, hoje.
 
Vítima de nosso – de todos nós – descaso histórico com aquelas pequenas coisinhas que deixamos para depois, que achamos que não vão dar em nada. esse maldito misto de despreparo de autoridades, irresponsabilidade privada e incompetência pública, que também responde pelo nome de “jeitinho brasileiro” e que, não poucas vezes, conta como nossa conivência…
e agora, que jeitinho daremos?
 
É certo que para uma tragédia contribuem uma série de fatores, descuidos, acasos, descasos e negligências. só não vamos cair nos lugares-comuns ditados pelos especialistas de plantão; os que têm solução para tudo e não perdem tempo quando acusam, embora, muitas vezes, sequer tenham feito sua parte…
que, como sociedade racional, façamos algo que seja digno da memória dessas crianças.
 
Conheço poucas pessoas que não estejam, de algum modo, ligadas à tragédia de hoje; são santa-marienses meus familiares e amigos, ex-colegas de cursinho e de ufsm, conterrâneos, parentes, filhos e irmãos de meus amigos que hoje lá moram, trabalham e estudam, amigos de minha filha, meus ex-colegas de filosofia que hoje lá lecionam…
 
Eu não consigo sequer imaginar a dor de celulares que tocam sem parar, a dor dos familiares das 231 jovens vítimas de hoje; quando penso no desespero dessas crianças que não sonham mais meu coração se parte. lembro que em santa maria fui feliz, mas nunca mais terei essa lembrança sem me sentir um pouco egoísta pela felicidade que, a partir dessa tragédia, centenas de pessoas jamais sentirão.
 
“tanta vida diferente, tanta gente vem e vai, incerteza de quem entra, mas saudade de quem sai”, canta beto pires em “santa maria.
 
É assim que eu espero que santa maria renasça, fortalecida, dessa tragédia. que seus fihos que tão bem me acolheram continuem recebendo tanta vida diferente, tanta gente que vem e vai…
que as incertezas de quem entra, que um dia foram minhas e de meus amigos, tantos queridos amigos hoje machucados, dissipem-se e fiquem, somente, as saudades de quem sai.
 
Porque santa maria é assim, generosa.
 
* Texto originalmente extraído do Blog La Vieja Bruja

sábado, 26 de janeiro de 2013

Um líder no começo

xxxxx
Lucidez. “Sou dedo-duro para a oposição, c
omunista para o governo,
subversivo para os patrões”
E vem à tona, de súbito, um fato de 35 anos atrás. Uma entrevista de Luiz Inácio da Silva, mais popular como Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, então com 32 anos. Ali está a essência do pensamento de um operário que se tornaria presidente da República. A lucidez, a clareza, a coerência, a energia.
Volto ao presente. Telefona Cynara Menezes, valente jornalista da sucursal de Brasília. Acaba de inaugurar uma nova seção no seu blog, destinada a divulgar antigas entrevistas. Pergunta se conservo uma de minha autoria, aquela de Lula publicada pela IstoÉ de 1º de fevereiro de 1978. Não, não conservo. Diga-se que nada guardo da minha vida profissional, artigos, colunas, coleções de revistas e jornais que dirigi. Nem sei se tenho em casa algum exemplar dos meus livros.
 
Entra em cena outro valente, Dilico Covizzi, foi meu companheiro de trabalho em diversas ocasiões, a começar por Veja, na qualidade de peça fundamental do Departamento de Documentação da Editora Abril.
 
Seguiu-me no Jornal da República e na IstoÉ. Pesquisador emérito, sabe à perfeição como e por que um arquivo não há de ser necrotério de documentos e informações. Hoje a exercer a profissão na qual se formou, Direito, ainda me atende quando preciso, e cabe a ele a tarefa de capturar aquela entrevista, capaz de levar um presidente da Fiesp, Mario Amato, a dizer: “Só falta agora o Mino namorar Lula”.
 
A bem da precisão, contei naquele dia em São Bernardo com a preciosa escolta de Bernardo Lerer, enésimo valente, e desta surtida falo no meu livro de iminente publicação pela Editora Record, O Brasil, desabusado na mistura de memória com ficção. Por isso, a entrevista tem dupla autoria, restou-me escrever a reportagem que a precede, um perfil da personagem, estampada na capa de IstoÉ.
 
Dizia a chamada: “Lula e os Trabalhadores do Brasil”. Foi a primeira capa dedicada a quem, 24 anos depois, alcançaria a Presidência de todos os brasileiros, sem exclusão dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
 
O mergulho nas páginas de 35 anos atrás me fez bem, tenho todas as razões para me orgulhar daquela edição, daquela reportagem e daquela entrevista. Limito-me a reproduzir trechos desta. Bernardo e eu perguntamos: “Mas onde você está ideologicamente?” O entrevistado responde: “Digo de peito aberto que não tenho compromisso com ninguém e que o Sindicato de São Bernardo e Diadema é uma da poucas coisas independentes que existem nesta terra. Só tenho compromisso com os trabalhadores que me elegeram. No mais a gente é chamado de dedo-duro pela oposição, de comunista pelo governo e de subversivo pelos patrões”.
 
Insistimos. “E a ideologia, Lula, a ideologia?” E lá veio a resposta: “Para fazer um partido dos trabalhadores é preciso reunir os trabalhadores, discutir com os trabalhadores, fazer um programa que atenda às necessidades dos trabalhadores. Aí pode nascer um partido de baixo para cima”. Estávamos diante de um líder de visões agudas. Afirmava: “Existe, na categoria dos metalúrgicos, um pessoal preparado, que lê jornal e sabe das coisas. Mas a maioria não tem tempo de dar a bênção para os filhos”. E mais: “Eu tenho muito cuidado para movimentar esta classe trabalhadora ainda inconsciente, porque o retrocesso pode ser ainda maior”.
 
Nem por isso, tirava o time de campo. “Não devemos abandonar a reivindicação, se não conseguirmos o que queremos, vamos voltar à carga em 1979, e não se não conseguirmos em 1979…
 
Não estou preocupado se o ano é eleitoral, os donos do poder é que em um momento como este estão preocupados. Por isso, acho que é hora de negociar, num nível bem alto (…) Quando eu digo negociar, é porque não existe poder de barganha. (…) No entanto, vejam como são as coisas, o movimento sindical está preocupado com o AI-5. A mim, o que incomoda é um artigo da
 
Consolidação das Leis do Trabalho que não permite a dirigentes sindicais discordarem da política econômica, quem discorda pode ser cassado”.
“Proponho-me – declarava Lula –, não incentivar aos trabalhadores a fazerem greves, mas a prepará-los a entenderem o valor da greve.” Ele já compreendia a diferença entre consumidor e cidadão, e este é aquele que tem, exatamente, a consciência dos seus direitos e dos seus deveres. Pois é, a consciência da cidadania, atributo tão raro até hoje, 35 anos depois, em todos os níveis.
 
Enfim, o pensamento do futuro presidente, situação inimaginável então. “Em defesa do capital nacional, eu me aliaria a eles como brasileiro (referia-se aos empresários ‘de visão menos poluída’) como se estivesse cumprindo um dever para com meu país. Claro que pretenderia levar as minhas vantagens nesta aliança, mas acima de tudo estaria o interesse nacional.”
 
O texto é de Mino Carta, na Carta Capital

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

No Mali, não há uma guerra do bem contra o mal

Não aceitem a narrativa frequentemente empurrada pela mídia ocidental sobre o Mali, que estereotipa aquilo que se considera o mal assim como faz com a brutal guerra civil imposta na Síria. No Mali, até há pouco o governo nacional perseguia e matava os islâmicos que agora se voltam contra ele. Além disso, muitos dos revoltosos são os tuaregues expulsos da Líbia pós-Kaddafi. A análise é de Owen Jones, do jornal ‘The Independent’

 
Sem qualquer controle, sem debate, sem votação parlamentar, sem nenhuma sutileza. A Grã-Bretanha está agora envolvida em mais um conflito militar em um país muçulmano, fiquem sabendo. Aeronaves britânicas estão voando rumo ao Mali, enquanto a França bombardeia o país, argumentando que a milícia islâmica malinesa poderia criar um “estado terrorista” que ameaçaria a Europa. A Anistia Internacional e especialistas da África Ocidental alertam para o potencial desastre da intervenção militar estrangeira, mas as bombas “chovendo” nas cidades malinesas de Konna, Léré e Douentza sugerem que eles foram definitivamente ignorados.

A agonia no Mali surgiu apenas atualmente em nossas manchetes, mas as raízes são antigas. Como as outras potências coloniais ocidentais que invadiram e conquistaram a África a partir do século 19, a França usou táticas de dividir para reinar no Mali, levando a amargura entrincheirada entre os povos nômades Tuaregues – a base da revolta atual – e outras comunidades do Mali.

Para alguns ocidentais, este é um passado distante que deve ser ignorado, não remexido, e certamente não será usado para impedir nobres intervenções, mas as consequências ainda são sentidas diariamente. Inicialmente, o ministro de Relações Exteriores francês, Laurent Fabius, sugeriu que o legado colonial descartaria uma intervenção liderada pela França, mas pode se dizer que o envolvimento direto francês ocorreu de forma muito mais rápida do que o esperado.

É que esta intervenção é, na verdade, consequência de outra. A guerra da Líbia é frequentemente apontada como uma história de sucesso para o intervencionismo liberal. No entanto, a queda da ditadura de Muammar Kaddafi teve consequências que os serviços de inteligência ocidentais provavelmente nunca sequer se preocuparam em imaginar. Tuaregues – que tradicionalmente vieram do norte do Mali – compunham grande parte do exército de Kaddafi. Quando o ditador foi expulso do poder, eles voltaram para sua terra natal: às vezes à força. Do mesmo modo, negros africanos foram atacados no pós-Kaddafi na Líbia, um fato incômodo amplamente ignorado pela mídia ocidental.

Inundados com armas da Líbia em tumulto, tuaregues viram uma abertura para seu sonho de longa data rumo à autodeterminação nacional. Com a propagação de uma rebelião, o democraticamente eleito presidente malinês Amadou Toumani Touré foi deposto em um golpe militar e o exército manteve a sua dominação – apesar de permitir que um governo civil lidere a transição para tomar o poder.

Pode não haver certamente simpatia pela milícia agora em luta contra o governo do Mali. Originalmente, eram os nacionalistas seculares do Movimento Nacional para a Libertação de Azawad que lideravam a revolta, mas eles já foram deixados de lado por jihadistas islâmicos com uma velocidade que chocou os analistas estrangeiros. Em vez de alcançar a independência tuaregue, eles têm ambições muito mais amplas, ligando-se a grupos semelhantes do norte do Nigéria. A Anistia Internacional relata atrocidades horrendas: amputações, violência sexual, o uso de crianças-soldado, e desenfreadas execuções extrajudiciais.

Mas não caiam em uma narrativa tão frequentemente empurrada pela mídia ocidental, que estereotipa aquilo que se considera o mal, assim como temos visto a brutal guerra civil imposta na Síria. A Anistia relata brutalidades por parte das forças do governo de Mali, também. Quando o conflito originalmente explodiu, tuaregues foram presos, torturados, bombardeados e mortos pelas forças de segurança, “aparentemente, apenas por motivos étnicos", diz a Anistia. Em julho passado, 80 presos detidos pelo exército foram despojados de suas roupas íntimas, encarcerados em uma cela de 5m², cigarros foram queimados em seus corpos, e eles foram obrigados a sodomizar um ao outro. Já em setembro de 2012, 16 pregadores muçulmanos pertencentes ao grupo Dawa foram presos em um posto de controle e sumariamente executados pelo exército. Estes são atos cometidos por aqueles que agora são nossos aliados.

Quando o Conselho de Segurança da ONU, por unanimidade, abriu o caminho para a força militar ser usada, especialistas fizeram avisos claros e que ainda devem ser ouvidos. O International Crisis Group pediu foco em uma solução diplomática para restaurar a estabilidade, argumentando que a intervenção poderia exacerbar um conflito étnico crescente. A Anistia advertiu que "uma intervenção armada internacional pode aumentar a escala de violações dos direitos humanos que já estamos vendo neste conflito". Paul Rogers, professor de estudos de paz na Bradford University argumentou que as guerras passadas mostram que "uma vez iniciadas, elas podem tomar direções alarmantes, ter resultados muito destrutivos, e muitas vezes aumentar os próprios movimentos que se destinam a combater".

É concebível que esta intervenção pode – por um tempo – atingir seus objetivos de empurrar as milícias islâmicas e reforçar o governo do Mali. Mas a guerra da Líbia foi vista como um sucesso, também, e aqui estamos agora, envolvidos com a seu efeito bumerangue catastrófico. No Afeganistão, as forças ocidentais permanecem engajadas em uma guerra sem fim, que já ajudaram a desestabilizar o Paquistão, levando a ataques que mataram centenas de civis e desencadeando mais caos. O preço das intervenções ocidentais pode muitas vezes ser ignorado pelos nossos meios de comunicação, mas ainda é pago.

A intervenção ocidental liderada pela França, apoiada pela Grã-Bretanha e com possíveis ataques dos norte-americanos, sem dúvida, estimula a narrativa promovida pelos grupos radicais islâmicos. Como aponta o professor Rogers, a ação no Mali vai ser retratada como "mais um exemplo de um ataque contra o Islã". Com o alcance rápido e moderno da comunicação, grupos radicais na África Ocidental usarão esta escalada de guerra como prova de outra frente aberta contra os muçulmanos.

É preocupante – para dizer o mínimo – como o primeiro-ministro britânico, James Cameron, conduziu a Grã-Bretanha no conflito do Mali, sem sequer uma pretensão de consulta. As tropas não serão enviadas, nos é dito, mas o termo "planejamento deficiente" existe por uma razão: é uma escalada que certamente poderia provocar maior envolvimento britânico. O Ocidente tem um histórico terrível de alinhar-se com o mais duvidoso dos aliados: o lado que escolheram está longe dos direitos humanos que democratas os democratas amam.

Mas as consequências podem ser mais profundas. Além de espalhar caos pela região, a França já mapeou seus alvos que podem ser atingidos por terroristas, e o mesmo podem acontecer com seus aliados. É uma responsabilidade de todos nós questionar o que nossos governos estão fazendo em nossos nomes. Se não aprendermos com o que ocorreu no Iraque, Afeganistão e Líbia, então não haverá esperança.

* Owen Jones é colunista do jornal britânico The Independent. Siga-o em twitter.com/@owenjones84
 
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Mala costumbre

Daniel Paz & Rudy

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Uma direita à procura de um país

"A história nos oferece duas lições claras: reduzir a dívida é incrivelmente difícil sem crescimento, e aumentar o crescimento é incrivelmente difícil sem uma pesada carga de dívida pública" (Christiane Lagarde, diretora-executiva do FMI; 12-01-2013).

"Não se pode melhorar a situação fiscal sem que haja crescimento antes" (Shinzo Abe, líder direitista do conservador Partido Liberal, recém indicado primeiro ministro do Japão com uma agenda que inclui: pacote de US$ 115 bi em investimentos públicos; afrouxamento monetária e elevação da meta de inflação; 12-01-2013).

"O Banco Central não mira mais o centro da meta da inflação e aceita uma alta de preços maior para não prejudicar o crescimento. Controla fortemente o câmbio e, para completar, a equipe econômica faz maquiagens nas contas públicas(...) o PT ousou tocar num dogma do governo anterior aclamado pelos economistas". (O Globo; domingo 13-01-2013)

"As bases de uma economia saudável, promissora e atraente para empreendedores de longo prazo estão sendo minadas por uma política voluntarista, imediatista, populista e irresponsável, embalada num mal costurado discurso desenvolvimentista (...) o Executivo decidiu estimular com recursos orçamentários o crédito para investimento (...)numa crescente e perigosa promiscuidade financeira" (Estadão; 06-01-2013)

"A criatividade do Tesouro Nacional para fechar suas contas, com o uso de sucessivas manobras contábeis e brechas legais, criou no Brasil uma contabilidade paralela à oficial que coloca em risco a credibilidade fiscal (...) a economia do setor público para pagar juros da dívida foi no mínimo 35% menor que a oficial em 2012" (Folha de S Paulo; 12-01-2013)

As declarações dos insuspeitos quadros conservadores, Christiane Lagarde e Shinzo Abe, soam, como se vê, quase como provocação no cenário fiscal beligerante criado pelo conservadorismo brasileiro em torno dos gastos do Estado.

A ofensiva busca engessar políticas contracíclicas asfixiando-as num torniquete de ilegitimidade, alarmismo e descrédito.

Articulistas de peso e medida e competem para ver quem dá menos pelo futuro da estabilidade fiscal nas mãos da nova populista do quarteirão: Dilma Rousseff.

Ex-ministros do governo FHC --sob cuja batuta a dívida pública saltou de 30% para 51% do PIB, entre 1995 e 2002; hoje é de 35%-- disparam mísseis alarmistas a partir de bases midiáticas conhecidas.

O conjunto busca abrir espaço para dar sentido e ressonância à candidatura oposicionista em 2014.

O mantra fiscal tem como alvo camarotes e numeradas dirigindo-se, sobretudo, ao dinheiro grosso da finança local e forânea.

Tem pouco ou nenhum apelo aos ouvidos das gerais que por razões históricas legítimas e experiência intuitiva arguta menosprezam o sassarico retranqueiro e cobram o jogo ofensivo em busca de gols.

O dissenso entre uma coisa e outra faz colunistas provectas se comportarem como focas desastradas, torturando fatos e calendários na sôfrega ânsia de entregar a encomenda.

Procura-se a 'manchete popular' capaz de embalar o comboio anti-petista empacado na BR 2014.

Enforcar a reputação de Lula em praça pública? Anunciar a emergência elétrica? Eduardo Campos presidente?

A embreagem exala queimado e os pneus afundam no atoleiro.

Até Lagarde e Shinzo sabem que a camisa de força ortodoxa agrada ao rentismo mas reserva uma espiral descendente intolerável à sociedade e contraproducente ao conjunto da economia.

A direita brasileira está à procura de um país em que faça sentido escalpelar e pedir votos ao mesmo tempo e com igual intensidade.

Desqualificar moralmente o PT e suas lideranças históricas foi o primeiro esticão na tentativa de reconciliar a corda com o pescoço.

FHC advertiu e o diretório midiático rapidamente entendeu: sem fuzilar Dilma naquilo que a distingue, a reordenação do investimento em plena crise mundial, seria quase operar como cabo eleitoral da reeleição.

O 'caos econômico' ocupou o espaço generoso das manchetes reservadas antes ao julgamento da AP 470.

A prova do pudim tem sido um fiasco.

Mas se aos quituteiros da receita amargosa resta pouco mais que insistir no veneno, ao governo chegou a hora de readequar metas, métodos e discurso.

É contraproducente negar o óbvio.

A crise mundial de fato produz o enfraquecimento fiscal do Estado, que arrecada menos e gasta mais.

Mas também adiciona notável transparência aos conflitos de interesses.

Setores produtivos igualmente se dividem entre a sobrevivência industrial, por exemplo, e a preservação da voragem rentista cobrada por banqueiros, acionistas e seus ventríloquos na mídia.

Tudo o que é sólido se desmancha no ar: relações de força se mexem; espaços conquistados deslizam; aliados hesitam

O conjunto torna inteligível e pertinente para toda a sociedade discutir a questão básica do desenvolvimento: produzir o quê, para quem,a que custo e como?

Essa é a agenda que pode devolver ao governo a limpidez de um discurso que não apenas legitima suas iniciativas, como abre espaço para ir além delas, subtraindo terreno ao fiscalismo regressivo e alarmista.
 
Por Saul Leblon no Blog das Frases - Carta Maior

sábado, 12 de janeiro de 2013

O suicídio da imprensa brasileira

A imprensa brasileira está sob risco de desaparição e, de imediato, da sua redução à intranscendência, como caminho para sua desaparição.

Mas, ao contrário do que ela costuma afirmar, os riscos não vem de fora – de governos “autoritários” e/ou da concorrência da internet. Este segundo aspecto concorre para sua decadência, mas a razão fundamental é o desprestígio da imprensa, pelos caminhos que ela foi tomando nas ultimas décadas.

No caso do Brasil, depois de ter pregado o golpe militar e apoiado a ditadura, a imprensa desembocou na campanha por Collor e no apoio a seu governo, até que foi levada a aderir ao movimento popular de sua derrubada.

O partido da imprensa – como ela mesma se definiu na boca de uma executiva da FSP – encontrou em FHC o dirigente politico que casava com os valores da mídia: supostamente preparado pela sua formação – reforçando a ideia de que o governo deve ser exercido pela elite -, assumiu no Brasil o programa neoliberal que já se propagava na América Latina e no mundo.

Venderam esse pacote importado, da centralidade do mercado, como a “modernização”, contra o supostamente superado papel do Estado. Era a chegada por aqui do “modo de vida norteamericano”, que nos chegaria sob os efeitos do “choque de capitalismo”, que o país necessitaria.

O governo FHC, que viria para instaurar uma nova era no país, fracassou e foi derrotado, sem pena, nem glória, abrindo caminho para o que a velha imprensa mais temia: um governo popular, dirigido por um ex-líder sindical, em nome da esquerda.

A partir desse momento se produziu o desencontro mais profundo entre a velha imprensa e o país real. Tiveram esperança no fracasso do Lula, via suposta incapacidade para governar, se lançaram a um ataque frontal em 2005, quando viram que o governo se afirmava, e finalmente tiveram que se render ao sucesso de Lula, sua reeleição, a eleição de Dilma e, resignadamente, aceitar a reeleição desta.

Ao invés de tentar entender as razoes desse novo fenômeno, que mudou a face social do pais, o rejeitou, primeiro como se fosse falso, depois como se se assentasse na ação indevida e corruptora do Estado. A velha mídia se associou diretamente com o bloco tucano-demista até que, se dando conta, angustiada, da fragilidade desse bloco, assumiu diretamente o papel de partido opositor, de que aqueles partidos passaram a ser agregados.

A velha mídia brasileira passou a trilhar o caminho do seu suicídio. Decidiu não apenas não entender as transformações que o Brasil passou a viver, como se opor a elas de maneira frontal, movida por um instinto de classe que a identificou com o de mais retrogrado o pais tem: racismo, discriminação, calunia, elitismo.

Não há mais nenhuma diferença entre as posições da mídia – a mesma nos principais órgãos – e os partidos opositores. A mídia fez campanha aberta para os candidatos à presidência do bloco tucano-demista e faz oposição cerrada, cotidiana, sistemática, aos governos do Lula e da Dilma.

Tem sido a condutora das campanhas de denúncia de supostos casos de corrupção, tem como pauta diária a suposta ineficiência do Estado – como os dois eixos da campanha partidária da mídia.

Certamente a internet é um fator que acelera a crise terminal da velha mídia. Sua lentidão, o fato de que os jovens não leem mais a imprensa escrita, favorece essa decadência.

Mas a razão principal é o suicídio politico da velha mídia, tornando-se a liderança opositora no pais, editorializando suas publicações do começo ao final, sendo totalmente antidemocráticas na falta de pluralismo sequer nas paginas de opinião, assumindo um tom golpista histórico na direita brasileira.

Caminha assim inexoravelmente para sua intranscendência definitiva. Faz campanha, em coro, contra o governo da Dilma e contra o Lula, mas estes tem apoio próximo aos 80%, enquanto irrisórias cifras expressam os setores que assimilam as posições da mídia.

Uma pena, porque a imprensa chegou a ter, em certos momentos, papel democrático, com certo grau de pluralidade na história do pais. Agora, reduzida a um simulacro de “imprensa livre”, ancorada no monopólio de algumas famílias decadentes, caminha para seu final como imprensa, sob o impacto da falta de credibilidade total. Uma morte anunciada e merecida.
 
Por Emir Sader em seu blogue na Carta Maior