Diz a regra número 1 de Jornalismo que jornalista não é notícia a não ser quando morre estraçalhado pela mina em que pisou, como o húngaro Robert Capa, em 1954, ou pela metralhadora da favela carioca de Antares, como Gelson Domingos, mês passado.
Diz a regra número 2 que Jornalismo é combate no dia a dia e o resultado é escrito, televisado, difundido em rádio, internet ou celular para o leitor julgar, ele próprio, o que viu, sentiu, registrou.
Diz a regra número 3 que Jornalismo não é e nunca deveria ser conversa de sala de estar entre amigos, muito menos entre marido e mulher – e, pior, na hora do jornal televisivo de maior audiência porque fica encalacrado entre duas novelas, ponto alto do ibope.
O Jornal Nacional de segunda-feira (5/12) feriu as três regras: jornalista virou notícia de um quarto de hora, o que deveria ser o esperado de um profissional passou a ser apresentado como matéria especial, e a conversa entre Patrícia Poeta, Fátima Bernardes e o marido William Bonner não só virou extensão das telenovelas como comeu um precioso tempo para as notícias surpreendentes, aguardadas há muito.
Sonho declarado
Mulheres na TV brasileira sempre intrigam porque os cabelos são impecáveis, as roupas estalam de butique, o botox sempre no lugar, a voz às vezes escorregada ou sensual, mas o assunto – ah!, o assunto – não faz jus à opção feminista dos anos 1960, quando nos propusemos a virar a mesa e mostrar quantos neurônios estavam para ser descobertos.
De repente tudo vira novela na Globo, cada jornalista desfia sua história pessoal e a paixão pela profissão. Mas há muito tempo uma reportagem não estremece um coração ou uma investigação instiga os neurônios do lado de lá da telinha. O Globo Repórter virou caçada, natureza em flor, a beleza do nosso sertão. O zapping dominical nos conduz a pratos típicos e receitas culinárias detalhadas, bobagens de insustentável leveza. Tudo naturalmente voltado para o público feminino porque os homens estão plugados no futebol.
E o que deveria ser a grande reportagem com jornalistas de raça enfiadas de corpo e alma no lamaçal, apresentando histórias de peso mesmo descabeladas, desgrenhadas e com jeito de gente real, virou uma raridade, quase um oásis no tempo dos big brothers onde tudo soa tão natural e quase verdade.
O choque maior são as mulheres na TV, as mulheres da TV, as mulheres que fazem a TV. Por que sempre tão iguais e previsíveis, por que William Bonner tem de mostrar um filminho com as reportagens banais de uma Fátima Bernardes, sua mulher, entrevistando na praia, consolando uma vítima, respondendo a pergunta quase infantil “onde está você?”. Para Fátima soltar a bomba, o furo: depois de suados 24 anos de jornalismo – e 14 de apresentadora do JN – vai ter um programa próprio.
Ainda tivemos de ouvir da nova apresentadora Patrícia Poeta, também apontada como grande repórter, que todo o Brasil adoraria estar ali no lugar dela para dizer à Fátima como o povo anda louco para ver seu novo programa matinal que não sabemos se será tipo Xuxa ou o quê.
Ao mesmo tempo Bonner anda espalhando que tem um sonho. Não, não se trata de coberturas perigosas de repórteres especiais com tempo para apurar as milhares de histórias que carecem de divulgação neste país. O sonho de Bonner é apresentar um programa automobilístico. Sai Sérgio Chapelin entra Bonner. Como ele declarou, “gosto de carro, gosto de vinho, gosto de corrida”.
Dúvida atroz
A explicação de Bonner para a escolha de Patrícia faz as mulheres pensarem realmente que (neurônio, não) sem xampu não chegam lá. “Patrícia tem uma versatilidade enorme. Faz o Oscar, entrevista celebridades, além de ser conhecida no horário nobre.” Quase nos faz esquecer o resto: “Também fez desdobramentos dos ataques do 11 de setembro, eleições americanas, reportagens sobre presídios”. Em tempo, Patrícia morou nos Estados Unidos. E está saindo do previsível Fantástico.
Mas o que realmente contou na decisão foi a possibilidade de cumprir sua meta. Grandes reportagens? Não, Bonner explicou. “Informalidade, falar direto com as pessoas. Nós mudamos o JN no enquadramento da câmera, na linguagem. Que não chega a ser coloquial, mas a informalidade é uma obsessão minha.”
Vai chegar um dia em que veremos na TV uma repórter enrugada, quem sabe de cabelos brancos, apresentando reportagens tão impressionantes que vão dar orgulho da paixão por esta profissão, da virada de mesa nos anos 1960, de ver a mulher no lugar onde deveria estar no vídeo depois de meio século de opção feminista. Quem disse que serão feias? Algumas até surgem na Globonews, aqui e acolá em outra emissora, muitas no noticiário internacional, francês, inglês, americano, espanhol, escandinavo. No Jornal Nacional, terra dos Simpsons e da mulher maravilha, vamos ficar aguardando como a diretora-gerente do FMI Christine Lagarde na coletiva mostrada semana passada na TV, ao perguntar nos bastidores para o mediador William Waack: “Só uma mulher para perguntar? Onde estão as mulheres [deste país]?”
Artigo de Norma Couri no Observatório de Imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário