segunda-feira, 19 de março de 2012

Direitos humanos e diversidade religiosa



Por Roberto Arriada Lorea

Na democracia não há crime de heresia. O Estado laico assegura que cada cidadão e cidadã possa viver segundo sua crença, sem receio de ser perseguido ou perseguida por seu pertencimento religioso. Na Constituição Federal (1988), este direito está previsto no artigo 5º, inciso VI, o qual assegura liberdade de consciência e de crença. O ambiente democrático fomenta a diversidade, na medida em que as pessoas ficam livres para viver segundo suas crenças, acreditando ou não na existência de Deus.

No Brasil, durante a Monarquia, experimentamos outro modo de tratamento para o fenômeno religioso. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), por exemplo, não se cogitava de liberdade para o indivíduo escolher sua religião. O Livro Primeiro, título II, dispunha “como são obrigados os pais, mestres, amos e senhores, a ensinar, ou fazer ensinar a doutrina cristã, aos filhos, discípulos, criados e escravos”, enquanto seu Livro Quinto, título I, propunha “Que se denunciem ao Santo Ofício os hereges e os suspeitos de heresia ou judaísmo”. Assim, com o Estado impondo uma religião e perseguindo as demais, forjou-se a maioria católica no Brasil, naturalizando-se o tratamento desigual àqueles que não professam a religião da maioria.

A memória de um Estado brasileiro confessional e intolerante deve ser preservada, para assegurar que as novas gerações saibam que os valores democráticos, que asseguram o respeito à crença do outro, são conquistas do Estado laico, proclamado por meio do Decreto 119-A, em 1890. A laicidade, definida como o regime de convivência no qual o Estado se legitima pela soberania popular e não mais por algum poder divino, não é contra as religiões. Ao contrário, o Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega a existência de Deus, tampouco estabelece hierarquia entre as milhares de crenças professadas no país, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão. A laicidade fomenta a diversidade religiosa, inerente a uma sociedade livre e plural.
Importante destacar que o Estado laico assegura aos religiosos a liberdade para vivenciarem sua fé, inclusive discordando da hierarquia de sua própria Igreja. Assim, por exemplo, as mulheres católicas que escolham usar a pílula, ou os jovens católicos que escolham usar o preservativo, podem fazê-lo graças à laicidade, que lhes garante o direito de decidir livremente seguir ou não os dogmas de sua própria Igreja.

Contudo, a transição de um monopólio religioso para um regime de liberdades, impõe desafios à democracia. A mudança legislativa deve se fazer acompanhar por uma transformação cultural, que desnaturalize a desigualdade religiosa. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Organização das Nações Unidas pauta o tema da liberdade religiosa. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, enfatizando: “Tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro”.
Nas democracias modernas, a tolerância aparece como uma necessidade política e jurídica. Temas como a discriminação por motivos religiosos, ensino religioso na escola pública, assédio religioso, direitos sexuais e reprodutivos, capelanias militares, exibição de símbolos religiosos em prédios públicos, uso dos meios de comunicação para incitar o ódio religioso, são alguns exemplos que apontam para a necessidade de políticas públicas que contemplem a diversidade e não estejam condicionadas por uma determinada crença.

Debater essas questões exige uma enorme disposição para o diálogo. A ONU tem encorajado os Estados membros a enfrentar esse desafio. Em 1981, na Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou Convicção, o artigo 4º propõe: “Todos os Estados adotarão medidas eficazes para prevenir e eliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções no reconhecimento, o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica, política, social e cultural”.
Os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, no plano internacional, vinculam o Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de uma transformação cultural que desnaturalize a desigualdade, impondo aos funcionários públicos postura imparcial no exercício do cargo, quando representam o Estado. No Brasil, a Lei 9.459/97, em seu artigo 20, define como crime: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”. Caracteriza discriminação o fato de o servidor público, no exercício do cargo, estabelecer preferência ou distinção a uma determinada crença.

Nesse sentido, o artigo 19, I, da Constituição Federal estabelece a separação entre o Estados e as Instituições Religiosas, proibindo a subvenção a cultos e qualquer forma de aliança. Importa registrar que a colaboração mencionada no dispositivo, deve atender ao interesse público, o qual não se confunde com o interesse circunscrito a um conjunto de pessoas que compartilham determinada crença, ainda que majoritária.

Em 2011, a ONU volta ao tema, aprovando a Resolução 16-18, cujo conteúdo reforça a necessidade de os Estados membros enfrentarem a intolerância religiosa. Portanto, a iniciativa do Governo Federal, de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, merece ser festejada por todos que acreditam na democracia, pois demonstra a necessária disposição para o diálogo com os mais variados segmentos da sociedade, visando reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a diversidade, à luz dos Direitos Humanos.

Pescado no RS Urgente e originalmente publicado no site Judiciário e Sociedade, em 12/12/2011.


(*) Roberto Arriada Lorea é Juiz de Direito. Diretor do Departamento de Direitos Humanos da AJURIS. Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Núcleo de Estudos em Direito e Religião, da Escola Superior da Magistratura. Membro do Comitê de Diversidade Religiosa, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

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