sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Para a "direita" brasileira, ideológico quer dizer de esquerda


A nomeação do novo Ministro da Defesa permitiu que se confirmasse que o país está meio atrasado no que se refere à guerra fria. O leitor não leu mal: é mesmo de guerra fria que estou falando, mais precisamente, de um de seus resquícios. É daquela época uma definição torta da palavra "ideologia", que perdura.
Trata-se de palavra que foi objeto de muitíssimos debates. O leitor curioso pode ir a uma (boa) livraria ou biblioteca e verificar o fato. Mais geralmente, ideologia é avaliada em relação a ciência. Ideológico significaria não científico. É o sentido que lhe dá Delfim Neto, quase semanalmente, quando critica os economistas que pensam que fazem ciência. Insiste em dizer que fazem ideologia, ou seja, que defendem crenças não objetivamente fundamentadas.
A tradição marxista a definia como falsa consciência, ou seja, uma concepção equivocada do mundo, como, por exemplo, das relações entre patrão e empregado ou sobre o valor ou a função do salário (é uma concepção próxima de 'não científica', isto é, não verdadeira). Uma boa definição diz que a ideologia expressa nossa relação imaginária com o mundo - de novo, não seria a relação real. Outra: uma ideologia faz parecer natural o que é histórico e circunstancial (diferentes papeis de homens e de mulheres, por exemplo).
Para a "direita" brasileira, ideológico quer dizer de esquerda. Ou seja, a direita (some-se a ela o centro) acha que não é ideológica, que só a esquerda seria. É o que fica claro na declaração de pelo menos um general (e de diversos de seus "sargentos"), qualificando os pontos de vista de Celso Amorim como ideológicos. Eles fazem uma oposição curiosa: "ideológico" versus "de Estado", como se "de Estado" ("política de Estado", por exemplo) fosse um antônimo de "ideológico" ("política ideológica").
Ora, as políticas de Estado podem ser, e são, ideológicas. Votar a favor de certa política dos direitos humanos ou para o Oriente Médio é tão ideológico quanto votar contra. Uma das posições será provavelmente mais defensável do que a outra, e cada um achará que a sua é melhor. Ambas são ideológicas. Mas, a crer nos "especialistas", seu discurso seria racional, neutro, científico. E o dos outros, ideológico: falso e enviesado.
Que os generais repitam esta refinada cultura eu entendo. O currículo das escolas militares é meio antigo. Mas que o grosso dos jornalistas e dos intelectuais que eles convidam para suas mesas redondas, que são sempre os mesmos, ainda tenha uma igual é assustador.

O texto é de Sírio Possenti no Terra Magazine

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

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